Clara Clara, Lorenzo Mammì



Num filme antigo de Totò, célebre comediante italiano (Totò, Peppino e a malafemmina, 1956), dois napolitanos, na véspera de ir para Milão, aprendem que lá há a neblina, que faz com que “não se veja nada”. Ao descer do trem, num dia perfeitamente sereno, um dos dois exclama: “Que neblina!”. E quando o outro reclama que não está vendo nada, replica: “Justamente.” A piada é boa: se o efeito da neblina fosse tornar impossível a visão, deveria ser ela mesma invisível. Mas a neblina é bem visível e, como qualquer corpo opaco, encobre o que está atrás dela. Dizemos que não vemos nada porque não olhamos para ela, apenas através dela, e não conseguimos ver o que queríamos. Aliás, se a neblina fosse completamente opaca, se não nos prometesse mostrar os objetos que afinal esconde, não proporcionaria uma sensação tão clara de perda da visão. O que faz que na neblina não se veja nada é que nela, afinal, alguma coisa se vê. Por outro lado, é um lugar comum desde a filosofia antiga que a luz exerça uma dupla ação: ao mesmo tempo em que torna visíveis as coisas, torna visível a si mesma. Analogamente, nossa mente torna-se perceptível não por uma imagem ou pensamento específico, mas ao produzir imagens e pensamentos de outras coisas. Haveria então um paralelismo entre pensamento e iluminação, justificado inclusive pela etimologia (o termo grego para representação mental, phantasia, derivaria de luz, phôs). Mas a tese é verdadeira só se falarmos em visão num sentido muito amplo: na realidade, nunca vemos a luz em si, a não ser em situações muito particulares, como em experimentos científicos. O que vemos são objetos iluminados e fontes luminosas. Analogamente, é raro pensarmos no pensamento. Luz e pensamento não são propriamente objetos da visão ou da representação, mas algo que acompanha necessariamente toda imagem. Não podemos dizer que os deduzimos posteriormente: dão-se de imediato. Mas também não se incorporam totalmente ao objeto: se prestarmos atenção a eles, embaralham um pouco a vista. Nesse sentido, se a luz é metáfora do pensamento como meio de representação, a neblina poderia ser metáfora do pensamento como ruído que cerca toda representação. Até onde poderíamos levar esse raciocínio? Há uma neblina conotativa entre nós e as coisas, que borra a pureza do estímulo ótico: vemos o frio num bloco de gelo, o calor numa nuvem de vapor, o tempo numa pedra erodida, o vazio na distância entre os objetos (ou será a distância no vazio?). Aqui também, não se trata de meras inferências: a percepção visual é imediatamente fria ou quente, demorada ou instantânea, cheia ou vazia. Uma longa tradição estética nos ensinou a desconsiderar esses aspectos: o branco é branco, não interessa se neve ou linho; o vermelho, sangue ou maçã, é vermelho. A obra de Laura Vinci, ao contrário, circula por essa terra de ninguém, onde o ato de visão ainda é íntegro, mas já começa a se decompor em qualidades. O vazio, o tempo, a atmosfera, a temperatura são questões centrais para ela. Se, por exemplo, verdadeiras maças são dispostas sobre uma mesa de mármore, junto com pequenas esculturas também em mármore (Ainda Viva, São Paulo, Galeria Nara Roesler, 2007), não é apenas uma contraposição de vermelho e branco, redondo e poligonal, que está em jogo, mas a relação entre dois “tempos” diferentes da cor e da forma: o branco e os contornos do mármore são estáveis; o vermelho e a esfericidade das maçãs alcançam um ápice, depois murcham. Há uma tensão no vermelho e uma paz no branco, uma solidez no polígono e uma maciez na esfera, que não são mera questão de geometria e gama cromática. O mármore, na nossa cultura, está ligado ao clássico, à permanência, ao ideal; a maçã é símbolo da tentação, do sensível, do átimo que foge e deve ser colhido. E finalmente, maçãs sobre uma mesa, para todos nós, querem dizer Cézanne, ou seja: uma pintura que se refaz continuamente e nunca acaba. Convém nos determos um pouco nisso, antes de abordar a questão que Clara Clara enfrenta: a luz. O mármore aparece pela primeira vez numa instalação de 2000, no Centro Universitário Maria Antonia, na dupla forma de esculturas arredondadas, que a artista chamou de Brancusas, e de pó amontoado, onde afundavam e que em parte as recobria. O pó, por sua vez, remete ao monte de areia da instalação sem título realizada três anos antes nas Oficinas Matarazzo, por ocasião de Arte Cidade 3. Este trabalho, certamente seminal na obra de Laura Vinci, já foi muito comentado. Aqui, será suficiente salientar o contraste entre a areia amontoada e o esqueleto do prédio em ruína. O prédio estava virando pó. A areia, por outro lado, já é pó e não mais se transforma, é um estágio final. De certa maneira alcançou a eternidade, só muda de lugar porque todo lugar lhe é indiferente. Os prédios, ao contrário, ruem porque são história, intenção de duração, necessariamente fadada ao fracasso. Entre os dois extremos, o fio de areia, coando para o andar de baixo, marcava o tempo. Por sua vez, as Brancusas do Centro Maria Antonia, arredondadas, brancas, pareciam indestrutíveis. Poderiam se consumir, reduzindo-se imperceptivelmente, mas não serem quebradas, porque não tinham arestas. Pela remissão a Brancusi, aludiam à história da arte, como o prédio das Oficinas Matarazzo remetia à história tout court. Remetiam, mais precisamente, a um artista que trabalhava as pedras como o tempo as erode, alcançando inesperadamente, em plena idade moderna, um momento de conciliação entre natureza e arte. Mas esse momento só pode ser retomado se der conta de seu complemento necessário, a matéria que foi sacrificada à conciliação. Como pedras enterradas na areia, as Brancusas são protegidas pelo mesmo pó em que se consumam. Aquela obra foi a primeira alusão explícita de Laura Vinci à história da arte (as esculturas de ferro da década de 1990, por certo, deviam muito a Giacometti, mas não explicitamente). Mona Lisa, de 2001, foi a segunda. Retomava a ambição de Leonardo de pintar o diáfano, sobrepondo inúmeras camadas de tinta até gerar, quase literalmente, um volume de ar entre o olho e as figuras -- outra tentativa de conciliação, nesse caso simbiose, entre arte e natureza. A instalação de Laura Vinci tornava visível o ar pela evaporação de água contida em bacias de vidro e esquentada por resistências, alimentadas, por sua vez, por tubos de cobre. A descrição é tão tortuosa quanto a própria obra o era. Os tubos de cobre se espalhavam como galhos ou raízes, e as bacias, dispostas desordenadamente, pareciam ter sido arrastadas por uma enchente, de maneira que o vapor, mais do que efeito, parecia causa de um micro-clima tropical. Esse caráter se tornou mais evidente no ano seguinte, quando os mesmos elementos foram incluídos na instalação Estados (São Paulo, Centro Cultural Banco do Brasil). No saguão do antigo banco, o diálogo com a arquitetura foi necessariamente mais cerrado: se os tubos de cobre encontravam um parentesco imediato com os corrimãos de latão que cercam o espaço em vários níveis, as bacias de vidros se espelhavam na grande clarabóia de vidro colorido que se abria acima delas. É aqui, a meu ver, nessa troca a distância de reflexos, que a pesquisa de Laura Vinci se embate finalmente com a luz. Mas, de novo, antes de enfrentar definitivamente a questão, há outros desdobramentos. Um, que me interessa especialmente, é A máquina do mundo, montada pela primeira vez em Siena em 2004 e remontado, com variações, na Bienal do MERCOSUL (Porto Alegre, 2005) e na Paralela de São Paulo em2006. Hoje integra a coleção do CAIC em Inhotim. Desta vez, a referência não é um artista, mas um poeta, Drummond – o poema do mesmo título, incluído em Claro Enigma. O trabalho marca um salto em relação à integração de arte e natureza que comentamos nas obras anteriores: o maquinário está à vista, com toda a deselegância de um industrialismo já antigo, e abre um buraco preto, rigidamente retangular, na montanha branca de pó de mármore. É como se a matéria inerte tivesse introjetado a geometria em ruína das Oficinas Matarazzo. A cavidade realmente, como quer o poema, “abriu-se majestosa e circunspecta,” e a matéria assumiu para si, com dignidade um tanto resignada, a tarefa de mudar de lugar, mesmo sabendo que afinal dá no mesmo. Aquele retângulo preto é um tanto assustador, sobretudo nas versões mais enxutas de Porto Alegre e São Paulo: como se não abrisse para um interior, mas para um vazio infinito. Lembra de perto um quadro antigo, e a semelhança é tanto mais instigante enquanto talvez seja involuntária (ou, em todo caso, não declarada): refiro-me ao Enterro de Cristo de Fra Angélico. Angélico, além de mestre da perspectiva, era excelente orador: sabia do efeito de um recorte tão abrupto, dentro de uma simetria tão estruturada. Para ele, a morte de Cristo era o fato decisivo, o corte irreversível na ordem cíclica da natureza (repare-se que as folhas das árvores são amareladas à esquerda, verdes à direita). Apesar de sua doçura aparente, esse pequeno painel talvez seja, junto com o Cristo morto de Mantegna, a mais pujante imagem da morte que o Renascimento nos deixou. Lembra também, além da Máquina do mundo, a caixa recoberta de borracha e piche que Joseph Beuys produziu em 1957; um espaço isolado que tudo absorve – luz, som, energia --, uma espécie de negação absoluta. Mas do buraco da Máquina do mundo sai uma esteira carregando matéria: ao se desfazer por dentro, a montanha pare outra montanha. O ciclo se repete impiedoso e aparentemente inútil, mas enfim: é nisso que estamos. E a instalação sugere que nesse ciclo exista um lado obscuro, uma região da morte que só se revela às vezes, e por negação. Finalmente, a luz. Clara Clara foi montado pela primeira vez em Melbourne em 2006, num daqueles becos altos e estreitos típico das cidades anglosaxônicas, para onde dão os fundos de velhos prédios de tijolos e por onde, nos filmes americanos, fogem os bandidos. Foi remontado agora no centro de São Paulo, numa rua também curta e estreita. É muito simples: cachos de luzes (luminárias comuns, daquelas protegidas por uma armação de ferro que se usam em espaços abertos) são recolhidos em redes suspensas às cornijas dos prédios. À noite, não há outra iluminação: tem-se a impressão que as luminárias caíram de seus lugares costumeiros e ficaram presas aí e, não sei em Melbourne, mas em São Paulo, onde grande parte da fiação ainda é a céu aberto e tem amiúde um aspecto de gambiarra, a situação parece quase plausível. Mas a rede sugere também a captura de seres vivos, talvez anjos ou estrelas caídas, ou uma pesca milagrosa de almas, ou vagalumes. Talvez, porém, a instalação revele melhor seu significado de dia, possivelmente num dia nublado. As lâmpadas, então, não iluminam mais nada, a luz fica grudada nelas como uma espécie de gosma amarelada. Finalmente vemos a luz, não algo iluminado ou que ilumina, nem mesmo um raio de luz, mas uma luz-coisa, uma luz-matéria. Entre as duas montagens de Clara Clara, Laura Vinci enfrentara mais uma vez a questão da luz, numa obra que se chama, justamente, Lux (São Paulo, Capela do Morumbi, 2008): cachos de vasos de cristal suspensos a aros circulares. Não havia iluminação especial, mas os cristais refletindo um a outro se embebiam da luz ambiente, pareciam sugá-la e acelerá-la, como num redemoinho. Exatamente o contrário acontece em Clara Clara: a instalação emite luz, mas a luz pára, fica presa nela. Se Lux remete ao jogos de reflexos das bacias de vidro de Estados¸ Clara Clara remonta mais atrás, às telas que Laura Vinci produzia em início de carreira. Entre elas, uma das séries mais bem sucedidas se intitulava O quarto (1987). Outras telas pouco posteriores não têm título, mas repetem substancialmente a mesma estrutura. São listras finas, claras (amarelas, vermelhas, às vezes literalmente metálicas, de estanho) sobre fundo escuro, ou vice versa. Quanto são linhas escuras no claro, parecem caixilhos ou assoalhos apenas visíveis em aposentos inundados de luz; quando são claras no escuro, frestas de luz num quarto fechado. Todos nós temos a experiência dessa luz debaixo da porta, que é bem visível, mas não consegue entrar, e fica aí, meio frouxa, com seu amarelo de ovo mexido. Ou então a luz leitosa que invade o quarto e apaga tudo como uma neblina, quando de repente abrimos uma janela. Nos dois casos, é uma luz objetivada, que não se transmite, mas, ao contrário, veda ou estanca. O mesmo acontece em Clara Clara, de dia e de noite. A luz é um dado sensível cuja natureza profunda é por em relação duas coisas: o sujeito que olha e o objeto que é olhado. Quando ele mesmo se torna coisa, deixa de ser o que é. Vemos finalmente a luz, mas ela não ilumina. Justamente, diria Totò.

Para sempre é sempre por um triz, Diego Matos



"Para sempre é sempre por um triz (1), Diego Matos" Entre a escultura e a instalação, entre a dança e o teatro, está a produção poética e material da artista Laura Vinci (São Paulo, SP, 1962), sempre na busca por nos trazer a matéria do espaço e do tempo de maneira simultânea. Em sua nova presença expositiva, temos a apresentação de Triz, a nova ação da artista na Galeria Marcelo Guarnieri de Ribeirão Preto, reunindo algumas frentes de seu universo artístico.

Trata-se de uma artista que, apesar de ter plena consciência de seus alicerces históricos na arte brasileira, possui uma produção que olha especialmente para uma razão instalativa, que nem sempre dialoga com a racionalidade da tradição construtiva local, afastando-se de princípios conceituais desta matriz histórica. Na verdade, há sim uma preocupação ambiental em que o espaço e, seu par imediato, o tempo se comungam na configuração momentânea da obra.

Tendo em vista o seu universo poético e conceitual, podemos nomear artistas contemporâneos brasileiros que de certo comungam interesses semelhantes aos da Laura Vinci. Além de nomes incontornáveis da arte brasileira como Tunga, Iole de Freitas, Nelson Felix ou Carmela Gross, percebo também uma aproximação com artistas geracionalmente mais próximos como Artur Lescher, Ana Paula Oliveira ou Vanderlei Lopes. No entanto, mais do que tentar enumerar artistas que comungam de interesses próximos, acho de suma importância discorrer sobre alguns aspectos relevantes de sua produção. Por isso, em texto, sinalizo alguns termos que me parecem relevantes na observação crítica de suas mais variadas obras.

Em primeiro lugar, entendemos que a obra de Laura Vinci possui uma vocação pública, não apenas por distinguir a natureza de um lugar, entre o público e o privado, entre o encontro ou a intimidade, mas por gerar um ambiente em que espectador ou visitante (que percebe o trabalho), é contaminado pela presença sutil da obra. Esta interfere inclusive na sua relação com o outro – aquele com quem negociamos a ocupação, ou o uso de um determinado perímetro de espaço. Há, portanto, um jogo tático de sedução, em que a beleza é percebida no desconhecido, sendo ela a força de atração para quem ali se dispõe a ser afetado. Portanto, por meio de uma situação efêmera que ali é posta, aparece esse apreço quase onírico do que não conhecemos, algo que é da ordem do sublime. Podemos citar como exemplo a própria dinâmica instaurada em Triz. Nela, há a repetição de uma estrutura metálica composta por duas ou três escoras de aço cromado, atravessadas perpendicularmente por uma espécie de cone (produzido a partir de peças que compõem instrumentos de sopro), que emite um ruído sonoro seguido de uma fumaça, em um certo intervalo de tempo. Isto, por sua vez, mobiliza o visitante, e o faz estar em um estado de alerta e curiosidade. Essas peças douradas cônicas e as várias hastes, muito polidas, onde está um maquinário acoplado, remetem à rigidez e à assepsia de um ambiente fabril ou laboratorial controlado, no qual não se identifica uma função existencial de uso, apenas o encanto sedutor localizado entre a artimanha técnico-científica e a riqueza adornada dos materiais.

A meu ver, é aquilo que Guilherme Wisnik indica em sua conversa com a artista: a ideia de uma violência surda que parece nos levar a sentimentos conflituosos. Esse valor é também agravado pelas estruturas de correntes dependuradas pela galeria, assim como pelo zigue-zague dos fios tensionados na parede do espaço expositivo. Por isso, gosto, e até prefiro, a ideia de uma potência de energia a ser desprendida, ou de um possível perigo iminente que está à nossa espreita. Trata-se de algo que nos afeta sinestesicamente.

Entretanto, seguindo para além dessa potência armazenada, a artista não interdita o espaço, o lugar em que a obra se desenrola, seja ele interno ou externo. Ao contrário, gera presenças intermitentes, por vezes ritmadas; mas que em outras situações imaginadas parece ocorrer de forma mais aleatória e imprevisível como se não houvesse ali uma intervenção prevista pela inteligência sensível da artista. De maneira alguma, não se trata de um descontrole, mas que toda via é capaz de gerar reação do ambiente que a cerca. Penso que tal condição permite que um trabalho ganhe caráter único para cada situação em que acontece.

Para tantos desses sentidos que tento pôr em palavras, dois trabalhos-chave podem ser mencionados: a já histórica intervenção realizada no projeto Arte/Cidade III em 1997, aquela agigantada ampulheta nas ruínas de uma antiga cidade industrial, e a intervenção escultórica e urbana “No ar”, na qual uma delicada bruma abraça com uma força sutil os espaços em que é ativada, desde sua primeira versão no final dos anos 2000. Há como a representação de um ciclo comum à efemeridade de um espetáculo, uma espécie de movimento que se sucede ao longo do tempo de presença do trabalho. E, que a qualquer momento, poderá sofrer alguma transformação, ruptura.

Por consequência, Instabilidade e Impermanência - dois conceitos e/ou ideias relevantes para entender o campo poético de Laura Vinci –, entram como duas qualificações possíveis para entendermos o que está em jogo, agora em Triz. O próprio anúncio sonoro que ouvimos das estruturas que também emitem fumaça, nos alertam para esse vir a ser. É algo muito bem pontuado pela crítica de arte Thaisa Palhares, em seu texto “Paisagem Dessublime”.

Também, a distribuição de fios e correntes com peças delicadas em vidro, e as peças escultóricas de mármore ao rés do chão, acaba por inserir uma série de personagens na instalação que chamam o nosso olhar para uma observação mais aproximada. Prevejo um mesmo estranhamento sedutor que me atravessou quando vi a instalação Ainda Viva, de 2007, em que uma nobre bancada de mármore branco era acompanhada de cônicas peças em mármore, e de um número generoso de maçãs. Essas, com o passar do tempo, tendiam a apodrecer. Ironicamente, é como se capturasse a impermanência de uma natureza-morta.

Ainda, valeria atentarmos para as palavras “triz/tris”. Na língua portuguesa, o uso de “tris” com s, tem um outro significado, que, a meu ver, também pode ser associado à instalação. Há no conjunto alguma sensação de delicadeza quando percebemos a presença do vidro, as estruturas exíguas e a elegância das peças; por isso, “tris” - que significa “ruídos, sons de coisas que se quebram, desmoronam, que se estraçalham” –, também caberia no universo de signos que reverberam nesse conjunto de trabalhos instalativo. Assim, compreende-se uma certa ambiguidade que ali é apresentada.

De modo geral, compreendo que o pensamento escultórico da artista resvala na cena dramática da tríade corpórea “performance – dança – teatro”, três linguagens que atravessam a produção plástica e conceitual da artista. Talvez seja essa a tríade que ao mesmo tempo alicerça e aponta ao futuro de sua prática artística. É aqui que mais enxergo o pulsar contemporâneo de Vinci.

Podemos inclusive mencionar a ideia de um desaparecimento da escultura nas investidas artísticas de Laura Vinci, como discutido em entrevista conduzida por Guilherme Wisnik e Luisa Duarte. É bem verdade que há sim uma desmaterialização do gênero escultórico moderno que, entretanto, é a própria requalificação de um modo de operar a arte que hoje vive e convive em constante negociação, justamente com as três linguagens mencionadas anteriormente.

É como se a operação artística fizesse um movimento transitório, sobrepondo características de diversas manifestações culturais. Aliás, em sua mais recente publicação, fica ainda mais explícita sua relação com o próprio teatro e a dança, para além inclusive de sua destreza como cenógrafa próxima de uma direção de arte. Vejo a artista advogando por um lugar híbrido de atuação: a criação de um espaço material em que o corpo não aparece de maneira literal, ou sugerido pelas mais variadas peças, só que ele é instado a se fazer presente.

Laura nos presenteia com um trabalho que caminha para borrar as fronteiras do que seria um percurso mais definido com a origem e o fim bem delimitados. Há uma circularidade de tempo e matéria que não se finaliza, conduzindo para recomeços e variações de intensidade. É algo que já havia sido anunciado na instalação “Máquina do Mundo”, de 2006, em que uma esteira industrial carrega porções de areia de um morro a outro. Um gesto tão comum na monstruosidade do universo extrativista e industrial, mas que na arte ganha valor de tempo, e desestabiliza o valor de permanência do entendimento escultural.

No espaço da Galeria Marcelo Guarnieri, essa é uma característica que se mantém em evidência, juntamente com a ideia de uma ocupação insinuada quase que total dos espaços horizontais e verticais, chão e parede, peso e elevação. As próprias estruturas metálicas estabelecem uma ligação entre os componentes espaciais arquitetônicos.

Em Triz, como a própria Laura Vinci coloca em seu último livro, percebe-se uma arena, um espaço de presença em que muito de sua produção escultórico-espacial ganha uma outra forma de estar, estar em conjunto, estar em relação. Como ela mesma disse em entrevista publicada e depois em nossa conversa em sua oficina-ateliê, há em sua produção o desejo quase silencioso de dar visibilidade à transmigração (2) de elementos que povoam o contexto de suas ações diante da tríade que mencionamos anteriormente. Gosto também de dizer que agora aparece, ainda mais sublinhada, a configuração de cena, tal qual a que vemos na tensão do cinema, no campo sedutor da criação cinematográfica.

Por enquanto, gostaria de enfatizar a potência agregadora da obra de Laura Vinci que te convoca a partir de uma capacidade de sedução. Não só pelo que identificamos como beleza plástica, assim como também pelas situações desconhecidas que o trabalho nos coloca ao definir materialidade ao tempo, anunciando presença. Trata-se de algo que está por vir, a mesma eminência que a noção dada pela palavra “triz” poderia evocar. Por isso, é também um exercício permanente da instantaneidade, fornecido pelo sopro sonoro de fumaça, cadenciando a percepção espaço-temporal de cada indivíduo que circula pelo espaço. É o estímulo último à presença: se a construção de cena do teatro ou do cinema estimula a atuação do ator/atriz, a instalação de Laura Vinci seduz e impulsiona para que nossa presença reaja. Enfim, corpo e obra estão acesos e interrelacionados nesse Triz que agora se apresenta, um jogo contínuo de transformação.

(1) Verso da canção “Beatriz”, de Chico Buarque e Edu Lobo. A versão de maior apreço de público e crítica é a gravada no disco “O Grande Circo Místico” (1983), interpretada por Milton Nascimento. (2) O termo aparece em conversa documentada entre Laura Vinci e Marta Bogéa, presente na publicação da artista intitulada “Teatro das Matérias”.

A dimensão do excesso, Felipe Scovino



O ambiente criado por Laura Vinci para esta exposição remete a um componente fabril. Roldanas, correntes, dispositivos maquínicos e sistemas em rotação que estão constantemente produzindo. Mas produzem o quê? Nada, na acepção capitalista de atribuir valor a uma mercadoria. As máquinas estão em funcionamento mas sem indicativo de produção. Estão operando sem uma meta, isto é, dentro da concepção mercantil são máquinas inúteis. Sintomaticamente, trabalham dentro de uma lógica que expõe uma perspectiva de mundo que não privilegia mais o sono mas a produção persistente.

As engrenagens de Laura convertem-se em uma potência sem finalidade porque não produzem mercadorias. São máquinas que correspondem ao avesso do que se espera delas. Laura faz uso de uma alegoria do modelo fordista, de uma produção em série, interminável e constante que visa o consumo desenfreado. Esse modelo de trabalho sacrifica o trabalhador transformando-o em um sujeito automatizado, um híbrido de homem e máquina. O trabalho fabril, em sua atmosfera alienante, constitui ambiguidades como o lucro em troca da perda de subjetividade do trabalhador, por sua vez, transformado em uma espécie de extensão daquela roldana. O movimento constante das esteiras, gerando novos produtos em um ritmo em que a pausa inexiste, captura e desestabiliza aquele sujeito que produz e também consome. Sem contar, é claro, o fato de que as máquinas ocupam cada vez mais o espaço do trabalhador. Em resumo, o sentido alegórico usado por Laura, apropriando-se de esteiras e objetos em constante movimento, transforma esse sistema maquínico em uma imagem bélica, associando-o a um ambiente insalubre e caótico, sem pausa para o pensamento pois a ação repetitiva é o que prevalece.

Laura está interessada no dispêndio improdutivo. Como Bataille, por meio de estratégias distintas, volta-se para um questionamento sobre a dimensão do excesso. Suas engrenagens expõem o nonsense e, sem dúvida, os malefícios e incongruências do sistema capitalista a partir dele mesmo. Digo isso porque Laura constrói os seus próprios autômatos, sua própria “fábrica”. Com essa estratégia, evita ser fisgada, minimiza a condição de presa e lança obras que oferecem mais do que aparentam e não entregam, necessariamente, o que prometem. Eu diria que quem quer panfleto, encontrará pensamento crítico, reflexão existencial, humor e dor . De certa forma, essas obras atuam como iscas. São cativantes, sedutoras, engraçadas mas profundamente críticas. Fazem parte da estratégia a dimensão do excesso felipe scovino de Laura para escapar e sobreviver às artimanhas e armadilhas da contemporaneidade.

Em tempos de excesso, há a exigência pelo gasto e descarga que resulta, finalmente, em desperdício. A leitura de Laura sobre esse aspecto é perspicaz. O pó dourado produzido por uma das suas máquinas é simultaneamente produção – o produto é poesia, algo etéreo, imaterial e sem valoração dentro do pensamento capitalista – e falta, ausência, incompletude. Ele representa a materialidade desse dispêndio improdutivo. Essa observação crítica sobre o consumo resulta na observância da própria tragédia humana – como nos relacionamos com as coisas do mundo – mas também na aparição de uma comicidade. Suas máquinas, por conta também de sua condição espetacular (e não poderia ser diferente pois se trata de uma fábrica com todos os seus tipos de fascínio possíveis) promovem um riso de canto de boca, resultante mais, acredito, da nossa dificuldade em se colocar diante do absurdo.

De uma de suas máquinas desprende-se uma haste que, por sua vez, possui um pano vermelho em sua extremidade. Remetê-la a uma bandeira passa a ser uma situação usual. Contudo, existem algumas especificidades que fazem dessa comunidade simbólica e imaginária um lugar simultaneamente frágil e reflexo dos tempos incertos que vivemos, mas também de resistência. A bandeira é um pano ordinário e sem valor. É uma bandeira, constituída enquanto projeto e invenção, que não está hasteada, mas murcha, frouxa, numa condição de astasia como a nossa, quando nos colocamos criticamente frente não só às configurações de exploração do capitalismo, mas também a popularização de discursos de ódio e seu comprometimento público. Mas não penso que a bandeira seja o símbolo de uma pulsão de morte mas de atenção ao entorno e de compromisso crítico com a liberdade. A bandeira vermelha, o pó amarelo e o dourado que cobre a superfície das folhas, um elemento que percorre essa exposição e há muito tempo o seu trabalho, são os pontos de cor nesse complexo fabril. São eles quem trazem o componente de fuga, a poesia e a ira em meio a uma racionalidade destrutiva, fria e determinada pelo cálculo, produção, fim, ganho e especulação. O pó, em especial, possui uma particularidade. Usado na festa indiana Holy Festival, quando se comemora a chegada da primavera, e feito de amido de milho, ele possui esse caráter espiritual – e porque não onírico – mas também, enquanto “produto” de uma das máquinas, é uma lembrança de que nem todo processo ou produto industrial precisa caminhar para a destruição.

As folhas cineticamente cintilantes representam uma contraposição ao aspecto industrializante dominado por uma cultura massiva da máquina e pelas suas consequências maléficas ao sistema social. As folhas são da ordem da artesania; são partes de um organismo pulsante e resistente ao trajeto avassalador da indústria. A exposição alerta para um espanto ou, então, exatamente para a falta dele nesse momento. Se por um lado a forte presença maquínica e seu condicionamento em produzir eternamente coisa alguma nos fala de um mundo regido por uma potência do excesso, por outro a mostra expõe a nossa mudez ou o condicionamento a essa circunstância extremamente violenta. Vivemos em meio a um pensamento burguês e predatório, como se pudesse separar uma coisa da outra, que preza pela destruição de biomas, rios, montanhas, mares, animais, indivíduos precarizados em razão do progresso, de uma economia pulsante e do nosso bem-estar.

Se na primeira parte da exposição, as máquinas e seus sistemas de produção estão relativamente distantes mas formando um grupo coeso, na sala ao fundo assistimos a um adensamento das relações entre natureza e cultura. Um galho sustentado por fios se embaralha com roldanas e correntes que pendem do teto. O signo de uma floresta ameaçada, de uma natureza invadida pela ação predatória do homem é evidente. A exposição volta-se para uma cena densa e ameaçadora. O fato de não conseguirmos adentrar esse ambiente – a localização dessa obra em um corredor extenso e apertado torna-a ainda mais trágica e assombrosa – e observarmos à distância, demarca a nossa passividade frente ao confronto natureza e cultura. O espanto está diante de nós mas não conseguimos tocá-lo e de certa forma compreendê-lo. Muda, título dessa obra, ainda possui um dado fantasmagórico ressaltado pela sua forma compacta e sombria. De tempos em tempos, o pó amarelo surge como uma névoa, como a iminência de uma transformação. Pouco a pouco, pousam sobre os galhos a poeira amarelecida, como um processo que põe em combustão aquele tecido vegetal. Se existe a possibilidade de lermos como percepção de renovação, de aspiro a uma espécie de encantamento, muito por conta da propriedade quente do amarelo, por outro lado, essa imagem da névoa é também a de um sentido de algo nebuloso e ameaçante. Vem-me à mente as imagens dos turbilhões de areia ou da densa massa cinzenta de poluição que paira sobre as grandes metrópoles.

Muda é um jogo de palavras. Faz uma correlação direta com o elemento vegetal que constitui a obra mas expõe a nossa falta de atitude e perplexidade frente às atrocidades do contemporâneo. A presença alegórica das máquinas junto a uma floresta está diretamente vinculada à extração de minérios e as consequentes tragédias em Minas Gerais ou na Amazônia para nos atermos a dois exemplos cotidianos e vinculados sistematicamente na mídia sobre o dimensionamento de desastres ambientais conectados à ganância do homem.

A alegoria da fábrica ou usina de força em sua máxima potência, funcionando a todo vapor, usada por Laura reflete demandas urgentes. Põe em evidência a máquina como símbolo do extrativismo e da destruição, de uma lógica irracional dominada pelo excesso, mas indica, em seu adensamento crítico, um ponto de fuga: a possibilidade não só de refletirmos sobre o estado grave que vivemos mas termos uma nova relação, como uma situação avessa a essa brutalidade do contemporâneo, com o mundo adotando o imaterial, o tempo estendido e o ócio como estratégias para o existir.

Paisagem dessublime, Taísa Palhares



Em sua primeira intervenção em um espaço público na cidade de São Paulo, a artista Laura Vinci retoma pontos centrais de seus trabalhos anteriores, nos quais o pensamento escultórico é marcado pelo questionamento em torno do caráter efêmero do tempo e do espaço, do movimento como o núcleo essencial da matéria e do corpo como a base de uma percepção constantemente ativa e em diálogo com o lugar. Diante de suas instalações somos muitas vezes confrontados de maneira bastante sutil com uma série de polaridades sobre ideias ou conceitos amplamente aceitos, cujo resultado final abala nossas certezas e ao mesmo tempo amplia nossa visão de mundo.

Não raro, suas instalações não se furtam a criar, mediante imagens produzidas com extrema inteligência e delicadeza visual, uma sensação de instabilidade e impermanência dos seres e das coisas sem que isso se torne um motivo de angústia. Ao contrário, acredito que o trabalho de Laura Vinci nos aponte sobretudo para a capacidade (sem excluir os limites) de regeneração. E aqui penso em obras emblemáticas em sua trajetória recente, como a ampulheta simbólica realizada para a terceira edição de Arte/ Cidade [1997], Estados [2002], Warm White [2004], Máquina do mundo [2005], Ainda viva [2007] e, mais recentemente, No ar [2010]. Em todas elas, a artista opera a partir da manipulação de elementos naturais como a água, o vapor, o gelo, a areia, o vidro ou o mármore, a fim de sugerir a capacidade natural de transformação.

Mas notamos que, se há nesses trabalhos explicitação de um dado fundamental para a compreensão das mudanças no interior do mundo natural – a saber, a energia como o elo entre as partes, metaforicamente presente nos diversos momentos ou estados das instalações –, o fato de enquanto “formas artísticas” dependerem de uma ação que em última instância é artificial (pois foi fabricada, como bem nos lembra a artista quando aproxima a natureza ao universo do laboratório e das manipulações científicas deixando à mostra motores, máquinas, fios de cobre, resistências etc.) indica o quanto esse processo de regeneração não é por si só evidente. Ou seja, em nosso mundo, ele também está sujeito a uma infinidade de variáveis e forças em permanente tensão.

Nesse sentido, a poderosa relação que a artista estabelece entre homem e natureza é muitas vezes apontada como uma atualização da experiência do sublime. Os trabalhos de Laura Vinci remeteriam a certa potência desconhecida para além do universo da aparência cujo reconhecimento causa em nós uma sensação de estranhamento, admiração e finitude. Contudo, acredito que, ao explicitar tão tenazmente os momentos de continuidade e descontinuidade entre os processos, a artista executa ao mesmo tempo, e por causa disso, também uma reversão desse sentimento, diríamos quase um desencantamento dessa mesma realidade.

Na instalação No ar esse momento de “despertar” se daria precisamente na paralisação da máquina que produz o vapor que sai do solo e toma corpo a partir da combinação entre a forma do espaço pelo qual se expande (a escadaria do Beco do Pinto) e as condições propriamente físicas (vento, chuva, luminosidade etc.) às quais está submetido. Por um instante, na verdade precisos três minutos, nossa visão é surpreendida e perturbada por esse ar úmido que sai magicamente do solo, como uma bruma que vem direto do passado e materializa metaforicamente a singularidade do conjunto arquitetônico. O som, por sua vez, nos lembra da existência de um rio que teria, em algum momento da história desse lugar, feito parte de sua paisagem natural.

Mas em vinte segundos, que parecem na verdade durar muito mais, Vinci introduz uma importante interrupção que funciona como um distanciamento crítico ao nos fazer voltar, de maneira inesperada, ao presente espacial do Beco do Pinto e imediações. A meu ver, o choque criado por esse lapso temporal adquire, para vivência do trabalho, o papel fundamental de seu outro complementar: sem ele, a imagem mágica criada pela intervenção da artista se tornaria mais poderosa do que o próprio fato de ela ser, na verdade, uma fenda. Ou quem sabe mera ilusão.

Todas as graças, Virgínia Aragones



A instalação Todas as Graças é um recorte peculiar na produção de Laura Vinci. Mais intimista, solicita uma ‘escuta’ sutil das formas, que se coagulam num desenho despojado, pontuando elegantemente um silêncio aparente. Condensações de espaço e tempo, essas esculturas funcionam num conjunto dinâmico, cujas relações internas acessam imagens que já habitam a natureza dos corpos ou se inscrevem em sua história. Concebida para este espaço, Todas as Graças é mais um modo característico da artista infletir uma arquitetura, tensionando as cordas de suas linhas de força enfeixadas por formas (Graças, Pins e Mundos) que fazem vibrar o teclado sensível para restituir seus significados.

Um cenário para a contemplação dos sentidos, sem a pressa e a clareza invasiva dos conceitos e das formas reiteradas pelo uso. Tramando relações que imantam vazios, tracionando as superfícies, essas formas absorvem nosso olhar num mergulho tátil. A memória do toque antecipa o olhar. Muito aquém das hipérboles do saber, convida a um despojamento, uma “atenção flutuante, uma longa suspensão do momento de concluir, onde a interpretação teria tempo de se aplicar em diversas dimensões, entre o visível apreendido e a experiência vivida de um despojamento”. Aderido à matéria, o tempo aqui é outro: alongado e remoto, mas, ainda, irredutivelmente presente num ritmo corpóreo que nos torna cúmplices. O espaço – nas palavras da artista, “um gigantesco corpo” – rompe a extensão contínua e inerte da geometria para refazer-se como espaço fenomenológico, ativado pela experiência sensorial.

As Graças, os Pins e os Mundos aqui dispostos desestabilizam e redesenham o espaço com sua concentração de volume e heterogeneidade. Mais que formas escultóricas e menos que objetos (impermanentes, subsistem no intervalo de uma história), são corpos que significam. Híbridos de matéria e sentido, orquestram outros ritmos em configurações que dissolvem fronteiras entre história e natureza, mente e corpo, narrativa e percepção. O contorno fluido das Graças projeta um corpo feminino; formas que deslizam em sua superfície luzidia numa dança de reflexos que recolhe vestígios de uma história. Já os Mundos nos contêm, mapeiam, mensuram, marcam a direção e os limites do sentido com uma clareza efêmera.

No contraponto desse movimento, o peso das peças as retém no solo; a gravidade faz delas reféns do destino comum da matéria, que acena a corrosão do tempo e a violência infligida aos corpos. Nem mesmo a bela dispersão dos Pins dissimula os alfinetes pontiagudos que perfuram a superfície contínua da parede como se ferissem a pele deste “gigantesco corpo/espaço”. A gravidade e a graça são, aqui, polaridades que organizam essas energias antagônicas, como na irresistível imagem da tensão incontornável que nos define no limite do humano em Simone Weil. Refluem a uma poética minimalista que, reconhecendo ecos de Anish Kapoor, Jessica Stockholder e Olafur Eliasson, ou mesmo Lygia Clark, Tunga e Amílcar, se obstina em desnudar na matéria sensível sua potência formal – mas para recompor seu estranhamento. Para além do deleite, a artista desfere um corte transversal na percepção, num gesto político.

O enigma que resiste nestas obras remete à tensão inerente da arte, entre matéria e luz, o perceptível e o legível, opacidade e transparência, “presença material bruta e discurso codificando uma história”. Mas o que são essas “imagens” que embaralham natureza e história? Para além do instante em que vivem na experiência, as obras-imagens têm uma sobrevida que se estende além da impressão; elas se desdobram em sequências de outras imagens, se sobrepõem e se associam em redes. O que é a memória senão compilação de imagens? Uma vez “carregadas de tempo”, diz Agamben, as imagens saturadas “se tornam história”. Há, portanto, uma vida das imagens a ser compreendida, uma temporalidade a ser desvendada, que a artista perscruta com fina consciência de uma natureza desconhecida que subjaz ao mundo físico e à memória da arte.

A figura das Três Graças surge na mitologia grega ligada a Afrodite (e a Vênus, na cultura romana), e é reeditada em diferentes épocas em versões tão ilustres quanto a Primavera (1470-80), de Botticelli, numa alegoria pagã das estações à luz do neoplatonismo florentino. Ela reaparece sob interpretações tão diversas como os estilos de Rafael, Rubens, Canova, Mailoll ou nas surpreendentes Três Sombras de Rodin. É revisitada pela antropologia moderna (Marcel Mauss) no conceito de graça como dádiva, gratuidade, ação generosa como o princípio capaz de converter a espécie em humanidade. Por sua vez, Aby Warburg explora a polissemia da imagem Ninfa na prancha 46 de seu Atlas Mnemosyne, considerando as imagens como fórmulas do páthos (Pathosformel), cifras de tempo, memória e drama. Sua imagem Ninfa, que reintroduz a figura seminal das Graças, não é uma imagem original da qual as outras derivariam, mas um composto de originalidade e repetição, em relações pautadas pela horizontalidade e com efeitos recíprocos. A ninfa, como as Graças, é, sobretudo, “a imagem da imagem que atravessou gerações”.

Com Todas as Graças, Laura Vinci nos interpela e instiga a ir além da trivialidade visual para decodificar a temporalidade impressa nas superfícies, restituindo a memória ao corpo e as histórias à arte. “Toda essa história está contida nas minhas Graças”, diz Laura, vendo nas imagens da arte, antes de tudo, imagens de imagens, condensações de tempo. Paralelamente, o que vemos aqui remete ao percurso da obra, que inicia com a pintura monocromática em telas sem chassis sob uma exígua agenda minimalista (1984). Opondo-se aos planos, as marcas e incisões na superfície diligentemente trabalhada premeditam suas esculturas bidimensionais em ferro fundido ou bronze, que preservam rebarbas e traços da modelagem em formas esguias que recortam o espaço (Verticais, 1990), ou suas tiras escuras estiradas no solo (Pretas, 1997), que lembram Robert Morris (Untitled, 1967-68). Mas é com a instalação Ampulheta (Sem Título, Arte/Cidade III, SP, 1997) que estados, passagens, processos e metamorfoses da matéria passam a ser decisivos em sua poética, intensificando a horizontalidade e entropia da matéria. Nas ruínas de um moinho, um pequeno orifício aberto entre os andares faz escorrer lentamente, ao sabor do vento, 50 toneladas de areia que mimetizam a deterioração gradual do edifício e nos envolvem corporalmente nesta meditação sobre a passagem corrosiva do tempo.

Seu trabalho tornou-se conhecido pelas instalações que exploram a plasticidade de materiais diversos (ferro, bronze, ouro, cobre, mármore, perlita, vidro, areia e água), agenciando suas propriedades e microestruturas (densidade, composição, grão, ponto de fusão e ebulição, etc.) para acessar a natureza dos elementos em seus estados e formas reversíveis. Com o uso de dispositivos (máquinas, sistema refrigeração, vaporização a frio, etc.) que reproduzem artificialmente esses estados e passagens da matéria, a artista metaforiza sua impermanência e instabilidade recompondo a natureza num drama metafísico. O tempo é experimentado a uma distância meditativa, como condição da existência e deterioração das coisas, que percebemos lateralmente ao observar aquele fio de areia que escorre entre as lajes do prédio em ruínas. Nele, tudo é necessariamente transitório, se cristaliza no presente já contendo o germe de sua dissolução iminente.

Mimetizando esse fluxo, a fluidez da água entre o estado líquido e o vapor é programática para sua poética. Turvando a paisagem com uma névoa espessa (No Ar, 2010, Lisboa, Pádua) ou numa fina camada de gelo que cresce na tubulação de uma sala “asséptica” (Estados, 2002), uma mínima intervenção no ambiente produz uma mudança desconcertante de cenário. Em Máquina do Mundo (2005), uma esteira rolante desloca, horizontalmente, montes de areia de um extremo a outro, repetindo ad infinitum o mesmo movimento, como se recitasse o poema homônimo de Drummond: “No sono rancoroso dos minérios, dá volta ao mundo e torna a se engolfar”. Parece, assim, metaforizar os ciclos da história, embaralhando mecanismo e natureza num “eterno retorno” em que tudo se desfaz e volta a erigir formas. Em Ainda Viva (2007), centenas de maçãs dispersas sobre uma mesa-escultura de mármore, entre pequenos módulos geométricos, se deterioram numa natureza morta que evoca o tema recorrente de Cézanne. Mas é a colisão desses dois tempos antitéticos, a perenidade do mineral e o ritmo orgânico do vegetal que perece exalando humores, que imprime a carga dramática. Em Choro (2010), um piano é saturado de vapor, gotejando água pelas frestas. Já em No Ar (2011), o impacto fica por conta de bicos de aspersão acionados por uma bomba que converte água em suspensão em nuvens de vapor que emergem em intervalos, engolfando o ambiente.

A artista ampliou sua investigação no universo teatral com coreografias e direção de arte. Em Cacilda! (Teatro Oficina, SP, 1998), com direção de José Celso Martinez, o cenário retinha traços escultóricos com um bloco suspenso (Anjo de Pedra), ainda experimentando efeitos cênicos como o plástico transparente sobre o qual o “sangue jorrava” atravessando o palco. A seguir, realizou o levantamento imagético para a peça Terra (Os Sertões, Euclides da Cunha) e a adaptação do romance O Idiota, de Dostoiévski (Sesc Pompéia, 2010-11). Também atuou na criação de O Duelo, na direção de arte de A última palavra é a penúltima – 2, e participou da criação de Na Selva das Cidades (2015), de Brecht, com a mundana companhia. Entre seus trabalhos mais recentes, Morro Mundo (Nara Roesler, Rio, 2017; SP, 2018) é uma instalação em que uma máquina é programada para liberar vapor quando seus sensores são ativados, que já é visível na tubulação de vidro que percorre a sala antes de tomar o ambiente numa neblina cerrada, subitamente desorientando o espectador. Já a instalação Diurna (Santander, SP, 2018), com projeção de sombras de árvores (vídeo mapping) nas paredes e pequenas folhas escultóricas num arranjo disperso, confronta a aridez da paisagem urbana com esse vestígio de natureza indoors.

Mas, aqui, uma leve inflexão nos redireciona a uma experiência à flor da pele, dilatando o tempo presente, sensivelmente vivido, psicológico, em uma experiência ampliada, histórica e ancestral, cujo catalizador consiste na polidez e no requinte das formas (ao contrário do suspense e da dispersão entrópica de outras instalações). A densidade destas formas sólidas (Pins, Graças e Mundos), inversamente proporcional à dispersão dos fluidos, passa a operar como metáfora de uma condensação do tempo que guarda um imaginário oculto. Uma “densidade” que é sintoma da desconcertante anacronia histórica da imagem artística, da colisão de tempos diversos que a arte faz caber num mesmo corpo-signo. Uma Beleza que fere, seduz e interpela, em seu mundo ainda sem palavras, para nos “fazer ver”.

Morro Mundo, Carlito Azevedo



O poeta francês Stéphane Mallarmé dizia fumar para colocar um pouco de fumaça entre ele e o mundo. Como se ela, fumaça, fosse uma espécie de lente ou escama, cabana ou anti-cabana mágica, mas sempre algo entre.

Laura Vinci, cujos trabalhos sempre foram sensíveis aos diferentes estados e vibrações da matéria, sabe, porém, que tudo é fumaça, cerração, névoa, nevoeiro. E a neblina um contorno espiritual. Não há um fora da neblina. Diadorim era a minha neblina, escreveu Rosa. Tudo névoa-nada, o Eclesiastes. Todos os homens, por serem homens, estão na neblina, queiram ou não queiram, Vilém Flusser. Uma neblina que aqui, em Morro Mundo, tem marés altas e marés baixas. E nos submete a constante flutuação do ponto de vista. É quando a matéria do mundo em ondas nos dança. Quem diz cerração, diz limiar.

Mas no princípio, concretamente, é a tubulação de vidro, esse inimigo do mistério, que já exibe a fumaça, ainda contida, quase amarrada, como um bicho, prestes a saltar, até ser finalmente liberada pelo acionamento dos sensores de presença e ir enrodilhar seu corpo por cada canto de espaço, engolindo-o e nos engolindo.

E se há algo que flutua, levita, essas escoras em Morro Mundo parecem sugerir que há também algo que cai, ameaça desabar: o céu? o peso aéreo? a linha do horizonte? São escoras contra a desaparição? contra o nosso desamparo, se pergunta a artista? Sustentam a máquina do mundo? Quem diz escoras, diz catástrofe? Interessa descascar as várias camadas de uma pergunta, o mais vigorosamente possível. Mas quem ergue uma escora diz o ruir, a ruína. Morro Mundo é político e seu diálogo com a hora presente é intenso. O invisível, o desaparecido, aquele que necessita da proteção da pedra (granada), da nuvem de fumaça e da escora é de algum modo pensado aqui.

E esses instrumentos de medição e precisão espalhados, suspensos? Bússolas, balanças, globos transparentes, o que fazem aqui? E esse X vermelho, como aqueles que nos mapas fabulosos marcavam o exato lugar, o ponto de chegada, a meta, o prêmio, o alvo, o tesouro, o que faz aqui, quase suprematista? Nossas tentativas de orientação e medida são escoras contra que brutal desabamento? O feixe de luz que lança um X vermelho à distância é uma lanterna, um sinal de fumaça? Quem diz luz, diz passagem do tempo. Elemento que desde a famosa ampulheta de toneladas e toneladas de areia, a escorrer por um furo mínimo na laje de um prédio abandonado, é, para Laura, quase o corpo de que tudo o mais seria como que o exoesqueleto.

Já em 2007, as pequenas peças de mármore da instalação Ainda viva, convivendo, fixas, duradouras, mas não eternas, com as maçãs espalhadas rumo ao apodrecimento, lento de dar vertigem, imparável contudo, mostravam que os atritos ou confrontos em Laura Vinci se dão em níveis sutis e complexos.

E não à toa se evoca aqui a instalação Ainda viva, cujo nome dialoga, dez anos depois, com este Morro Mundo, se lermos Morro mais como verbo, como às vezes sugere a artista, do que como substantivo. Morro Mundo Ainda Viva. Ainda Viva Morro Mundo.

A forte tensão interna entre a necessidade ou obrigação de orientação, de peso e medida, e a tentação ou castigo do perder-se, às cegas, tensão entre levitação e desabamento, cria uma espécie de movimento aqui que tem algo de prova de resistência.

Tudo é fumaça, mas, parafraseando D. H. Lawrence, qualquer bússola, qualquer balança, somos nós tocando o inaudível sinete de nossa presença no caos.

Muito Além da Aflição, Paulo Sergio Duarte



Querem o tempo aflito dos tijolos de notícias nas colunas de jornal, o mesmo das pílulas que devem lhes acordar e, depois, o das outras para lhes adormecer; o dos moto-boys, que quando buzinam já passaram cinco pelo retrovisor, o tempo inerte do engarrafamento e o tempo vil que corta o ponto dos pobres coitados que chegam atrasados. Querem o tempo sem antes nem depois, o do instante das bolsas em Wall Street, Frankfurt, Londres e São Paulo (maldito fuso horário que lhes obriga a esperar por Tóquio e Hong Kong). Querem o tempo cheio – feito as burras do banqueiro – das agendas sem espaço até daqui a dois anos. O tempo rápido dos jatinhos, mas que tem que esperar para decolar e pousar (ao menos aqui e nos EUA). Desejam o tempo das férias no paraíso e dos intermináveis fins-de-semana. O tempo do check-in e do check-out, doméstico ou comercial. O freqüente, da trepada rápida com a amante, e aquele de dilatados intervalos dos indolentes coitos nas mães dos filhos. Querem sempre o tempo do burocrático “Eu te amo” – repetido a torto e a direita. Na verdade, não amam mais nada, pois foi este tempo que escolheram que lhes ama, lhes adora e a ele se entregam como escravos, crentes que são mestres.

Pois foi sempre outro o tempo perseguido por Laura Vinci. Em contato com os seus trabalhos experimentamos um tempo perdido, não o da memória proustiana, mas aquele que foi seqüestrado pela vida contemporânea. Escultora, seu tempo adere à matéria mesmo que esta seja o vapor d’água. Lembro-me quando a instalação das grandes bacias que evaporavam o delicado vapor foram expostas ao lado de um Volkswagen imbecil que fazia piruetas no ar, numa Bienal de São Paulo. Havia uma clara insensibilidade na disposição dos dois trabalhos um ao lado outro. Mas havia algo de propedêutico, éramos, sobretudo o público leigo, preparados para sermos empurrados na estupidez contemporânea. Como a virulência de um trabalho monumental, que se apresentava literalmente como um brinquedo de parque de diversões, com suas cores fortes e seus movimentos rápidos, era apresentada ao lado de uma experiência da delicadeza? E, no entanto, o tempo de Laura passava…

Já sei que não há espaço para falar do Centro Cultural São Paulo, do Arte Cidade e da 5ª Bienal do Mercosul, nos quais o tempo se dilata transportando a matéria. Mas esta palavra é perigosa: matéria. Dá margem a muita abstração. Escultora, insisto, Laura trabalha com materiais. Dessa vez, não é areia nem água, são mármores e maçãs. “Que beleza!” está escrito numa obra de Mira Schendel. E é assim que antevejo essa instalação, pelas fotos, antes de montada. Em Mira, sempre contida no essencial, introvertida, salvo nos “Sarrafos”. Em Laura, agora, espalhada, mas “Que beleza!”. Com cor, o branco dos “Bloquinhos” e o vermelho das maçãs, vibrando e se opondo num contraste clássico, caro aos modernos.

Mas a festa para o olhar é breve. Logo será chamado a pensar. Uma oposição visceral alimenta o encontro dos materiais e seus tempos: o mineral do mármore e o orgânico das maçãs. Um perene – o da pedra –; outro vai apodrecer diante de nossos olhos – o da maçã. A decrepitude acelerada do ser vivo contrasta com a impávida permanência do mineral. Mas há a questão da forma.

É uma instalação que agrega diversas naturezas-mortas. É óbvio que essas naturezas-mortas lançadas no espaço por Laura Vinci teriam seus vínculos muito mais com Cézanne e Chardin do que com Morandi. São muito afirmativas. A solidez é Cézanne, a afirmação é Chardin. No Brasil, temos um passado de dignas naturezas-mortas no século 19. Poucas, mas boas, o que é essencial – mas ainda contidas nos limites da academia. Depois esperamos muito por Guignard, assim mesmo o gênero não consegue concorrer com suas paisagens de Ouro Preto. Mas as naturezas-mortas de Laura da Vinci são volumes. Arrumadas no espaço podem vir a ter diversas configurações. Quem dirá qual é a original? Umas estão arranjadas entre volumes de mármores e algumas poucas maçãs. As famosas maçãs de Cézanne. Outras dividem o espaço com inúmeras maçãs. Todas fazem parte de um único trabalho, mesmo que nosso olho possa discernir, aqui e ali, unidades. Já sabemos que Laura trabalha com o tempo e todo aquele que estudou direitinho história da arte sabe que, se os modelos vivos de Cézanne sofriam com os meses de tempo de pose – e Madame Cézanne foi uma das maiores vítimas –, ao contrário da disciplina da mulher e dos amigos, a natureza não se submetia às exigências do artista: as maçãs apodreciam diante dos olhos do pintor. É estimulante essa polarização entre o mineral e o orgânico, essa convivência entre dois extremos sobre os quais vivemos.

Mas o que permanece, não vai apodrecer, são formas construtivas. Lembram-me páginas dos livros de Lygia Pape tomando volume, jogados no espaço, sem a sua disposição hierática sobre a parede; “Bloquinhos” entregues com todo o corpo e magia, na sua permanência e brancura, esperando por novas maçãs, estas sim, que como nós, vão passar. Quanto às maçãs, compra-se nas feiras (já que não são pintadas).

Rio de Janeiro, outubro de 2007.

Aqui, Ali, Lá, Paulo Venâncio Filho



Nós teríamos que usar o gênero neutro, o verbo estar, os advérbios aqui, ali, lá, para falar dessas esculturas. A princípio estão diante de nós como objeto natural. Elevam-se do chão verticalmente e não chegam a ultrapassar a escala do cospo humano. Ficam próximas, ao alcance, nem além nem aquém da nossa medida. Aquiuma mais alta, ali uma estreita, lá uma mais larga. Nada mais fazem que instalar um espaço: fixar um aqui, ali, lá. Mas logo ao nos movermos essa situação já mudou, é outra; agora a que estava próxima se distanciou e a mais afastada ficou perto. Aqui, ali, lá trocaram de posição. Tudo isso não é estranho porque afinal nos movemos constante e incessantemente ainda que pouco reparemos nos andamentos e rítmos que as coisas nos sugerem ao andarmos. Estas esculturas de imediato propõem cadências , pausas, silêncios. Ora são recortes negros que vazam o espaço ou são escarpas ascendentes, ora frontalidade e perfil balizam um andamento negativo e positivo que se alterna. Assim as esculturas de imediato estão simplesmente – presente do verbo estar. Lá, aqui, ali, assim elas se

apresentam , sem mais compromissos do que propor caminhos

e percusos – ora conduzem, ora são obstáculos inofensivos.

Até a semelhança entre os trabalhos indica uma continuidade, o desenvolvimento e projeção de uma forma adiante, desimpedimento.

Mas ao andar, encontramos uma surpresa – um travamento.

As superfícies rugosas e saturadas dos trabalhos parecem exigir uma atenção diversa do mero reconhecimento posicional. Todas trazem um passado que se coloca em oposição às possíveis situações espaciais, às variações do aqui, lá, ali. Cada uma deseja manifestar o que é permanente: a anterioridade do fazer, o enfrentamento da matéria, a presença da mão e do tempo. Tudo isso resiste à entrega e se fecha reticente. Como se alguma coisa quisesse se esconder por trás dessas superfícies marcadas por gestos repetidos e ficar onde está, sem ser importunada, recusando o espaço e a exterioridade. Querem permanecer sólidas, pesadas, imóveis. Donas de si , desejam o recolhimento, desconfiadas do aqui, ali, lá. As marcas da mão na superfície do ferro não revelam nada mais do que a escultura tentando agarrar a si mesma – de bom grado não se deixaria exteriorizar, ficaria nela, quieta. Talvez seja por esse motivo que insinuem também uma falta. A completude é já o impulso imediato em direção à entrega. Incompletas, resistem.

Descobrimos que estamos diante ou dentro de antagonismos. Enquanto unidade espacial cada escultura está muita à vontade no aqui, ali, lá. Mas ao nos aproximarmos de qualquer uma delas – eliminando as demais da nossa atenção e campo visual – toda a disposição comunicativa cessa e a superfície turva gerada por gestos vigorosos impõem -se muda, travada na dureza do ferro. Surge uma incompatibilidade entre a vocação de cada e o conjunto. Juntas instauram um espaço comunicacional de andamentos e cadências, permitem o acesso, abertas. No entanto, ao tentarmos um contato direto com uma únia escultura, ocorre uma inversão comunicacional. Do espaço aberto e móvel desabamos na imobilidade e no fechamento. Diante do que se cala empacamos, desaparecem os andamentos e cadências. Somos aprisionados por aquilo que nos imobiliza: tempo, um peso implacável – aquele de todos os dias, de todas as horas, somados. Essas superfícies afinal mostram o quanto tornamos opacos a nós mesmos e o que só paredes cegas podem revelar.

Uma antiga parábola é renovada e recontada. A parábola do desencontro e do irreconhecimento diante das coisas. Tudo hoje quer levar ao indistinto, à saturação, à indiferienciação. Tudo quer levar-nos a aderir as imagens que vão e voltam sem deixar traços. Daí a força da escultura em colocar a soma dos esforços de pé, na nossa frente , mesmo que para isso precise emudecer e deixar uma mudez incomoda em nós.

Arte Cidade, Lorenzo Mammì



Texto extraído do artigo Uma cidade morta nas entranhas da cidade atual escrito por Lorenzo Mammì para o jornal Folha de São Paulo em 20 de novembro de 1997.

O moinho Central é um edifício de seis andares, de que sobraram pavimentos e vigas, e quase nenhuma parede. Do ponto de vista formal, um prédio de múltiplos andares é uma diagramação do vazio, uma tentativa de reduzir o espaço aéreo em paralelepípedos. Num prédio em ruínas, o espaço aéreo reconquista seus direitos: algumas divisões permanecem, mas revelam toda sua precariedade; o chão em que pisamos já não é tão chão como antes.

A estrutura da instalação de Laura Vinci transgride a estrutura do espaço, com sua divisão por pavimentos. Nesse caso, porém, não ha recortes brutais: apenas um pequeno buraco, que deixa cair um sutil fio de areia. No andar de cima, a areia, amontoada na curva redonda de uma duna, abre-se progressivamente uma cratera, escorrendo para o andar de baixo. Uma construção em ruína é uma construção que não consegue mais estancar o tempo. A areia é tempo enquanto erosão, e tempo enquanto ampulheta. Mas, sobretudo, é tempo enquanto movimento que depende do vento, da umidade, do peso variável dos grãos, e no entanto acaba criando formas perfeitas pela sua própria entropia, que equilibra e anula cada movimento com um movimento oposto. Assim, o monte de areia torna-se forma exemplar do contínuo temporal, em oposição ao edifício, forma exemplar da descontinuidade da história. E a areia recobre esse cubo industrial com a mesma regularidade inexorável e doce com que já recobriu as pirâmides do Egito.

No fundo, a coluna de areia que oscila ao vento no Moinho central, medindo a distância temporal entre teto e pavimento, é uma versão mais incorpórea de outros trabalhos da artista: listras escuras que sugerem uma verticalidade possível, ou serpenteiam no chão, deixando adivinhar uma curva invisível na atmosfera. De fato, desde que começou a fazer esculturas, Laura Vinci busca pontuações rítmicas do espaço vazio.

As Esculturas Pretas, Célia Euvaldo



Elas pertencem ao reino dos rastejantes, atraídas que são pelo solo de onde não se erguem mais do quinze centímetros. Desenvolvem-se ao longo deste feito lesmas – negras, lentas, silenciosas. Invertebradas, são pura exterioridade, não supõem nenhum núcleo nem estrutura que as organize ou gere. A projeção horizontal mostra o lugar, a gestalt destas peças. Como linhas traçadas a pinceledas, começam e terminam bruscamente, comandadas por uma vontade que delibera uma medida para cada uma. Mas é na ínfima elevação que elas revelam suas singularidades, em sutis inclinações e distorções nos limites exatos do equilíbrio, e em espécies de curvas, como pontes em negativo, projetando-se discretamente do chão que as retém.

Catálogo Galeria Camargo Vilaça, Lorenzo Mammì



Consumir, descarnar a matéria até que ela gere a forma quase como uma mais-valia produzida pelo trabalho _ essa é, me parece, a lição que Volpi transmitiu a uma parcela significativa da arte paulista. Autores como Paulo Pasta, Sérgio Sister e Laura Vinci saem daí .Se as obras recentes de Laura lembram bandeirinhas ou janelas petrificadas, não é por um jogo fácil de citações. É que nelas se reflete um tipo de fazer artístico que nas janelas e bandeiras de Volpi teve sua primeira expressão madura. Uma das consequências necessárias desse fazer é a rela;cão entre uma formalização aparentemente tímida e recatada e uma carga estética concentrada e intensa. A operação prevalece sobre o projeto.

As esculturas de Laura Vinci não criam um espaço se instalam num espaço já existente que só elas, porém, tornam visível. São Glosas, pontuações, comentários. O fato de o espaço já estar lá, condicionar as obras pressionando-as, quase empurrando-as para as margens, é o que diferencia esses trabalhos das esculturas de Giacometti, a quem poderiam ser aproximadas pelo perfil delgado e pela luminosidade tosca.

Giacometti faz com que o volume de suas obras seja irrdutível ao ar que o envolve, ainda que seja um volume limite, de uma fragilidade desesperadora. A base sobre a qual esse volume se apóia funciona como uma cerca, que o defende e o isola do mundo. As esculturas de Laura não têm uma base que as torne autônomas do mundo exterior. São mais corpulentas que as de Giacometti, mas não têm volume, apenas perfil. Qualquer que seja o ângulo de observação, temos a impressão de olhar a obra de lado, de não estar na frente dela.

A escultura clássica procura uma forma em que todos os pontos de vista proporcionem uma plenitude estética.Na escultura barroca, cada lado remete a todos os outros, ou ao espaço que o cerca, obrigando o observador a um movimento contínuo. É um dualismo que permanece na arte moderna. Nesse sentido, por exemplo, e com o perdão do esquematismo, Waltércio Caldas é clássico, José Resende é barroco. Uma das características mais interessantes da escultura de Laura é, a meu ver, o fato de fugir dessa oposição. Todos os pontos de vista são, nela, secundários, mas não forçam o olhar para o outro lado da obra, nem para fora dela, e sim para o vazio que parece ter se imprimido nelas, como uma pegada.

As esculturas de parede, as mais compridas, ilustram bem esse aspecto. Nas proporções lembram certas obras de José Resende, estruturas verticais que obrigam o olho a correr continuamente para o alto e para baixo. Mas Laura fecha suas linhas com elementos formalizados nas extremidades, justamente onde as esculturas de Resende se dissolvem. Essas conclusões tímidas, até um pouco irônicas talvez, que se projetam por alguns centímetros, lembram que a obra quer sobretudo marcar um limite, emoldurar, como um parêntese. Não vale tanto por si quanto pela porção de espaço que isola do fluxo do tempo, como um inciso num discurso, e que ornamenta nas bordas.

Laura Vinci começou como pintora. É curioso que suas esculturas, que fogem à frontalidade, sejam seus trabalhos mais felizmente pictóricos. Penso sobretudo nas esculturas mais amplas, de chão. As marcas das mãos na argila, passando pelo gesso e a cera, até chegar ao molde para a fundição, se transformam em algo parecido a pinceladas pesadas numa matéria gordurosa, que resiste. Mas isso seria ainda uma impressão superficial, uma lusão de ótica. Na verdade, é a relação que elas entretêm com o ar, a docilidade com que cedem ao peso do vazio, o que torna essas formas tão pictóricas. Não acreditamos que a superfície se sustente por dentro, que seja a face exterior de um volume. Ao contrário, se estabelece a partir de fora, como um sfumato, ou a marca de um selo. Claro-escuro de um gesto que não projeta sombras, rastro de corpos inexistentes.

Entrevista de Laura Vinci a Hélio Hara



Com materiais tão distintos quanto a pedra e o vapor, as peças de Laura Vinci tornam perceptível o que, tradicionalmente, é pensado como invisível. Em seu diálogo com o espaço, elas usam materiais que mudam de estado, falando sempre de transformações. Laura Vinci, que em 1997 fez também um primeiro trabalho em cenografia teatral (em “Cacilda!”, dirigida por José Celso Martinez Corrêa), mostra em “Estados” obras que convidam e provocam o olhar.

Nesta mostra, batizada de “Estados”, há materiais que vão da rocha ao vapor, passando pela areia e o gelo. “Estados” fala de transformações?

As três obras são como uma, falam da mesma coisa de forma diferente. São transformações e trocas, sem nostalgia. Movimentos que buscam repetir, copiar a vida. Um esforço para provocar no observador o instante da percepção, conquistar o olhar, o estado do olhar. A idéia de movimento é otimista, são transformações sem perdas. Nas trocas, não há melhor ou pior.

“Estados” apresenta trabalhos criados especificamente para o espaço que ocupam e com o qual mantêm uma estreita ligação.
Entendo o espaço como um corpo que se move e é transformado pela ação. Ações como o próprio movimento das pessoas. Nas obras em que uso materiais mais sólidos, o jogo é esse: o espaço é um corpo, e a matéria deve brincar de ser empurrada, outras vezes empurrá-lo. Há uma analogia com o corpo humano e urbano. Mais com o corpo humano devido à escala. No caso do vapor, o material quase se mistura de fato ao espaço. O vapor sobe e, ao condensar, volta ao estado líquido carregado de partículas do espaço.

E o cofre no subsolo cheio de pó de mármore?

Ele tem um lado bem-humorado, “o dinheiro que virou pó”. Também é uma forma de medir o espaço. É como um molde, que contorna o que não pode ser mensurado.

Esta é a primeira vez que você usa um texto em seu trabalho. Palavras, diferentemente de esculturas, carregam um significado têm forma conhecida…

Pensei nas mutações do corpo, da matéria e do espaço. Daí veio a idéia de que a língua, a linguagem e a cultura também sofrem mudanças. O texto é algo em movimento, você só não sabe exatamente o que está mudando. Para mim, é uma total novidade, são 104 letras, e o texto foi escrito praticamente de uma só vez. Ele está congelado, mas a intenção principal não foi provocar a sensação física do frio, e sim um estado de atenção. Também é novo para mim lidar com a medida espacial das palavras, elas dependem da arquitetura para existir.

Em sua extensa experimentação de materiais há uma hierarquia: do sólido, mais controlável, para o fluido, por exemplo?

É verdade que houve uma época em que trabalhava com materiais mais tradicionalmente associados à escultura. Uso vidro há algum tempo, e a água estava no meu imaginário desde 1997, quando fiz vídeos a mostrando esse material. Na verdade, a areia já foi pedra, o vidro, fisicamente, não é um sólido, mas um líquido duro. A areia é, ainda, o sólido que mais se aproxima da água. Portanto, os estados podem ser diferentes, mas, de alguma forma, os materiais estão ligados uns aos outros.

Formas de Repouso, Alberto Tassinari



O repouso é um dos desafios mais difíceis da escultura. Uma forma estática não costuma cativar muito a percepção e o olhar não consegue bem penetrá-la. É mais a calma de quem olha do que o ser visto que ocasiona, numa parada entre as atribulações cotidianas, um sentimento de sossego. Apóia-se o olhar em algo, importando mais o ato que busca apoio do que o objeto escolhido. Uma escultura, porém, não é uma coisa entre outras. Se o que possuir de mais próprio for uma apreensão do repouso, terá que se distinguir do que está apenas fixo para que o olhar não a tome como uma coisa qualquer onde encontrará descanso. O móvel do repouso se deslocará do espectador para a escultura. Dar repouso, mesmo a um olhar antes agitado, será obra da arte, não de quem olha. Daí a dificuldade do desafio, pois é uma ida até o repouso que a escultura expressará para se diferenciar do que é apenas inerte. Nesta ida, todo cuidado é pouco, pois levar a forma até o repouso sempre permite intromissões do movimento. Será necessário comedimento, sem entretanto eliminar o movimento, suas expansões, suas contrações, para que seu alvo, a quietude, não se perca.

Cada escultura de Laura Vinci parece encontrar no repouso sua principal motivação. A obra não apenas possui seu repouso, mas como que o apóia. As esculturas de 94 não teriam a mesma força, a mesma serenidade indevassável, sem as guias em que se apóiam e a partir das quais se estreitam. As formas de outro modo perderiam suas balizas, pois o repouso aí se recosta, e não só o chão sustenta as obras. As guias são o zero de movimento em relação ao qual as ondulações das esculturas se medem. Elas marcam o início ou o fim de uma movimentação da massa de ferro que encontra nas linhas curvas que contornam as obras um outro término ou começo. O movimento fica delimitado, contido. Se as crispações das superfícies surgem como oscilações que expandem e contraem as curvas, nunca rompem o perfil imutável da obra. A massa da escultura levanta-se ou escorre, mas sem ultrapassar seus limites. Não chega mesmo a engendrar um volume, a não ser o que é sugerido pelas linhas e pelas superfícies quando a obra é vista de lado, pois um volume que se desdobrasse em todas as direções destruiria a postura da escultura. Já vista de frente, ou de costas, é apenas uma cunha ou uma estaca no espaço. Ergue-se por suas laterais o quanto pode, mas sucumbe a seu peso, sem que a gravidade, entretanto, seja sua única coordenada. É sobretudo a partir de uma guia inicial firme e ereta que tudo mais vem à obra. Ela fornece à escultura sua altura e sua principal direção. Sob a ação da gravidade, mas também retida pela guia, a escultura debruça-se e, junto ao solo, mais uma vez descansa.

Conter o movimento, aquietá-lo, exige operações precisas. As esculturas de 94, dito de modo breve, encaixam suas ondulações num ângulo reto formado pela linha do solo e pela guia vertical. Pode-se imaginar um vento varrendo essas obras sem que elas se soltem de suas amarras. E são mesmo tais amarras que primeiro surgiram na trajetória do trabalho de Laura Vinci. Um conjunto anterior de esculturas já se articulava por meio de guias ou hastes, embora fossem mais altas. Também possuíam uma relação com o chão, pois, conforme deste se aproximavam, as esculturas ganhavam massa, como se a matéria escorresse. Ou, ao contrário, a massa levitava no topo da haste. Passar deste conjunto de esculturas para o de 94 foi fundamental. A questão do trabalho já era uma conquista do repouso, mas a direção vertical acabava por predominar. Há uma leveza nessas obras mais antigas, no vai-e-vem calmo que proporcionam entre o ponto mais alto e a descida até o chão. Nada que se assemelhe, porém, a uma espécie de disputa entre a haste e o solo para sustentar e deter a expansão e as movimentações das massas das esculturas de 94. O perfil curvilíneo, assim como as sinuosidades e os encrespados destas são a resultante da disputa. O repouso se torna tenso, no limite da ruptura, mas, pela mesma razão, denso, inabalável, mesmo vasto. Ainda que mais baixas que as anteriores, as esculturas ganham monumentalidade. A tensão que retêm é tal que perde-se um tanto a noção da escala ao olhá-las. O olhar nelas dura, vagueia, embora nada perdido, antes tranqüilo e seguro de si.

Nas pinturas que realizou em 87, antes que se dedicasse à escultura, Laura Vinci já buscava formas repousadas. As telas eram espessas, sem molduras e chassis que as contornassem. Mais pendiam do que aderiam à parede. Possuíam, por isto, um desenho irregular. Verticais, se assemelhavam a lençóis de diferentes cores: branco, dourado, negro. Até mesmo os títulos por exemplo, “O quarto” insistiam na similaridade. Repouso e metáfora do repouso, as pinturas não descuidavam, porém, de trabalhar o movimento até acalmá-lo. Sulcos verticais firmes mas um tanto inclinados em relação às bordas irregulares obrigavam a percepção a ajustar uma forma quieta diante do que em parte se desequilibrava. O esforço da percepção também encontrava no caráter ao mesmo tempo cortante e cicatrizante dos sulcos uma correspondência afetiva. Como se fossem ícones, as pinturas pareciam lugares de uma cerimônia um tanto enlutada, de uma dor contida. Talvez venha daí, quem sabe, que a artista tenha abandonado a pintura, depois de algumas tentativas mal sucedidas que se seguiram. É que são obras de uma maturidade rara para uma artista com 25 anos. Pode-se imaginá-las como o término de uma trajetória artística longa e coerente, que se depura e assume um aspecto direto, concentrado e último.

Para Laura Vinci, entretanto, as pinturas de 87 foram o começo de suas esculturas. Tudo se passa, retrospectivamente, como se fosse necessário saltar para o espaço ambiente para encontrar modos de prosseguir procurando o que suas pinturas tinham encontrado tão cedo. O primeiro conjunto de esculturas que realizou são hastes de ferro e de outros materiais que riscam o espaço verticalmente assim como os sulcos nas pinturas. Não imantam o espaço ambiente, porém, com a mesma intensidade que as linhas escavadas ao longo do campo das pinturas. Já possuem, entretanto, dois aspectos dos conjuntos de esculturas posteriores: um apoio ou um recosto para a forma algumas vezes preso à parede e o afunilamento em direção a uma linha. A artista realizou diferentes arranjos destas hastes e é mais no ritmo pausado dos arranjos que se assemelham à calma das esculturas posteriores. Isoladamente, perdem vitalidade. Ressalva, entretanto, que não possui nenhum valor crítico, apenas analítico, pois são obras que, salvo engano, nunca foram expostas, nem concebidas para ser expostas, solitariamente. Se as esculturas posteriores são tanto obras isoladas quanto passíveis de formarem os mais diferentes arranjos é porque o aspecto de cunha que possuem já indicado nas primeiras esculturas as faz surgir como flechas penetrando o espaço. Sem abandonar seu repouso e sua posição, cada escultura aponta para outra ou para suas proximidades. O espaço não é, então, apenas uma relação dada pelo ritmo, mas um espaço de densidades, de cheios e vazios, os quais se tensionam, se avizinham, se distanciam.

Num quarto conjunto de esculturas, as esculturas pretas que Laura Vinci realizou depois de 94, o chão, pela primeira vez, é o espaço por excelência das obras. Embora também possam formar arranjos, a relação entre elas já não é rítmica ou de diferentes densidades, mas gráfica. Agarram-se com tamanha precisão ao lugar onde se assentam que ao passar de uma a outra o olhar retém apenas o vestígio de um traço. Não há nisto nenhuma falha em relação às esculturas anteriores, assim como a aderência ao solo não as faz melhores que as demais. O pertencimento ao chão, entretanto, é uma inflexão importante na trajetória da obra da artista. Já tinha sido tentado em algumas esculturas anteriores a 94, mas sem muito sucesso. As formas, então, pouco se tensionavam. Parece ter sido necessário passar primeiro pelo intenso confronto, nas esculturas de 94, entre a direção vertical e a horizontalidade do solo para só depois livrar as obras de um apoio vertical e estendê-las pelo chão.

Descontadas a altura e a textura, as extremidades das esculturas pretas assemelham-se muito às esculturas de 94. Ligam-se, porém, por meio da própria escultura e não mais pelos vazios entre elas. O jogo entre vizinhanças e distâncias é agora conduzido por cada escultura. A matéria como se transporta por um sinuoso conduto horizontal. Daí o aspecto liso, escorregadiço, da textura das obras. As crispações das esculturas anteriores são removidas em prol de uma ondulação macia, enquanto a cor preta puxa a escultura mais para junto de si. De um lado a outro, de vizinhança a vizinhança, e de maneira contínua, a obra traça uma distância dinâmica, só dela, muitas vezes curva e inclinada. O espaço se expande e se retrai. A implantação no solo, porém, é o que possibilita as oposições. Vizinhança e distância, contração e expansão, nunca se desprendem da adesão da escultura ao chão. Junto a este, a obra se alarga, relaxa, ao passo que o restante do contorno é traçado por uma linha que parece também deslizar, pelos dois lados, até o solo. É de novo uma ida até o repouso que comanda as demais articulações da escultura. As movimentações horizontais nunca privilegiam um entre dois sentidos opostos. O olhar, do mesmo modo que vai, volta, suavemente contido por extremidades arredondadas, como as de um bumerangue que não necessitasse deslocar-se para retornar à posição de partida ou de chegada.

Se as esculturas pretas são um tanto inesperadas em meio a uma trajetória que desligando-se da pintura produziu três conjuntos de esculturas com diferenças acumulativas, os trabalhos de areia de Laura Vinci são ainda mais inusitados se comparados com os anteriores. A obra que realizou para a exposição Arte/Cidade em 97 não passa à primeira vista de uma grande ampulheta. Não há nada de notável, em princípio, num monte de areia disposto numa das lajes de uma fábrica abandonada e que através de um orifício deixa escorrer a areia para a laje inferior. Há duas diferenças importantes, porém, em relação a uma ampulheta corriqueira. Em andares diferentes, cada monte só deixa ver metade da grande ampulheta. Num caso, vê-se a areia escorrer não se sabe bem com que destino. No outro, um monte formar-se sem que se conheça direito sua origem. Mesmo que já se tenha percorrido os dois andares e as formas dos dois montes deixem de ser desconhecidas, a situação não se altera muito. A ausência de um dos montes ocupa pouco a imaginação em relação à presença e à percepção do outro, da ininterrupta e tranqüila movimentação da areia. Uma segunda diferença importante é a escala da obra. O tempo medido não se conta em minutos, ou mesmo horas, mas tem a dimensão de um tempo imenso. Como a origem da areia, ou a destinação, uma à outra oculta, não se domina por inteiro nem o tempo nem o espaço da obra.

O espectador percebe-se junto de um acontecimento que o ultrapassa, de um tempo e de um espaço dos quais participa mas que não é só seu, mas exterior e de todos. O monte superior lentamente se desmancha e assume a figura do passado transbordando no futuro. O monte inferior vagarosamente se forma e assume a figura do futuro depositando-se no passado. A concavidade no alto do primeiro monte é um vazio que equivale à forma convexa e cheia do segundo monte. A inversão das formas dos montes é, assim, uma tradução espacial dos modos opostos pelos quais passado e futuro passam em cada um. A união das duas formas, realizada pela linha de areia que escorre de uma para outra, é a figura do presente. Seria inalterável em sua forma não fosse o vento ou a brisa que vem de tempos em tempos torná-la mais viva, quebradiça e esfumaçada, marcando, assim, diferentes ritmos do presente. Seja como for, a grande ampulheta, uma metáfora da vida, não cessa de durar. Também não cessa o encanto de olhar as movimentações da areia, sobretudo as do fio de areia, ora vertical, ora esvoaçante, ora vindo ao cume do monte, ora contornando-o. Se a expressão do repouso, como até aqui se pensou, exige um movimento até o repouso, a grande ampulheta é disto uma encenação ao vivo. A linha de areia, apesar de célere, às vezes esgarçada, mansamente desenha os contornos dos montes. Mesmo em sua queda, visto que não pára, o fio de areia como que repousa em seu movimento. Sua quietude só se rompe e tremula aqui e ali pela ação do tempo, dos ventos.

Numa trajetória artística que começou com pinturas de uma meditação algo enlutada, a grande ampulheta é uma serena celebração da vida. Serenidade que marca cada fase do percurso de Laura Vinci. No que não está só, mas em comunicação com as obras de outros artistas de sua geração, como Fabio Miguez, Paulo Pasta e Sergio Sister, para citar apenas alguns nomes. São artistas da temperança. Num tempo em que a arte e a vida social sobretudo em países periféricos já não possuem rumos definidos, não adianta forçar a mão. Entregues ao presente, aceita-se e interpreta-se a situação, mas ao mesmo tempo se a critica, tomam-se distâncias. Não se opta nem pela indiferença nem por falsas promessas. Não se é deixado levar pelo imobilismo nem por um mundo que parece, e sobretudo parece, estar em transe e à beira do desastre ou de uma revelação súbita. São obras que procuram arrancar o presente de uma agitação estéril ou da paralisia. Dão tempo ao tempo. Se há, sem dúvida, outras respostas da arte para a situação confusa e tantas vezes decepcionante dos dias de hoje, a temperança, entre elas, tornou-se imprescindível. Não é uma virtude fácil. Ronda tudo o que não quer predominar. Nem sujeitar-se. A areia não se esvai com o peso da pedra, embora esta marque seu lugar. Estão juntas. E diferentes.

Olhos D'água, Alberto Tassinari



São bacias de vidro. Algumas vazias. Algumas com água. Outras, das que contêm água, soltam vapores. São aquecidas por resistências que até elas chegam por condutos de cobre. Tudo poderia estar desarrumado, mas o arranjo é sereno. Algo está se passando, acontecendo, mas não se sabe bem o que é. Lembra uma experiência científica. Mas, só de olhar, não é possível saber o que está em causa. Talvez nosso próprio olhar?

Como em outras obras de Laura Vinci, há movimentos, ou houve movimentos, ou parecem haver movimentos. Mas não importa. Sua poética, apesar do atual emprego de novos materiais e de novos objetos, é uma poética do repouso. Se o movimento conta é pelo fato que entrar ou sair do repouso o mostra melhor. Assim o vapor é como o de uma bruma na paisagem de um lago. As bacias se recostam tal qual frutas em naturezas mortas. E passar de uma associação de imagens a outra não assusta a imaginação. Ao contrário, a acalma. As desmesuras se apaziguam. A experiência, parece, é da ordem da quietude. E a água lhe cai bem.

Esta é a primeira obra de Laura Vinci em que a artista se afasta do uso de materiais tradicionais da escultura: os metais fundidos, a pedra e a areia. Na medida em que a areia, de certo modo, é o vapor da pedra. Aqui, porém, o vapor é vapor mesmo, embora os vidros das bacias, transparentes, inodoros, passem por uma espécie de solidificação da água. Vapores, líquidos e sólidos unidos por condutos elétricos que saem de uma parede em diversas ramificações. Por que algumas bacias estão vazias? Por que outras sem vapor? Não se sabe. E retorna a imagem de uma experiência. Mas olho aqui e olho ali e nada adivinho. Claro enigma, sinto-me rodeado. Olhado? Talvez. Mas por um olhar raro, um bom-olhado, que só existe na arte, em certos momentos do amor, ou, no meio da mata, quando, mansamente, nasce água de um olho d’água.

Mona Lisa no Meio do Redemoinho, Rodrigo Naves



Há sete anos o trabalho de Laura Vinci deu com um estranho veio. A partir da “ampulheta” — na verdade, uma obra sem título —, realizada para a mostra “arte/cidade” de 1997, a artista parece ter circunscrito um espaço que a colocou em contato com uma região extremamente complexa e produtiva, que impulsionou sua obra com uma potência admirável. Ocorria como se a partir daquela instalação a artista tomasse consciência de forças que estavam muito além dela, cabendo-lhe apenas elaborar os instrumentos que transformassem aquela energia dispersa em algo apto a ser experimentado pelos nossos sentidos — não só pela visão — , sem que, neste movimento, houvesse uma domesticação dos elementos que eram a própria razão de ser dos trabalhos.

Passagens, mudanças de estado da matéria, metamorfoses dos mais diversos elementos e transições se tornaram a marca distintiva de seu trabalho. Mas o lugar em que Laura se situava não se assemelhava ao Aleph do conto de Jorge Luis Borges, “(…) o lugar em que estão, sem se confundirem, todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos”. Ao contrário, tratava-se do ponto de cruzamento de forças expansivas e brutas, de energias fluidas e plásticas, anteriores às configurações e aos nomes. Por isso ela deparara com um estranho veio. Porque Laura Vinci não experimentara apenas uma trama de vasos comunicantes que restabelecesse a imagem de um mundo sereno e equilibrado. Com esse movimento, que de fato se mostra em algumas de suas instalações — a “ampulheta” (1997), a “Mona Lisa” (2001), “Estados” (2002) —, conviviam redes praticamente opostas àquelas, em que elementos extremamente aproximados — o branco do mármore e do pó de mármore da instalação realizada em 2000 no Centro Universitário Maria Antonia, o ambiente branco, gelado e asséptico da instalação feita em 2003 na Galeria Nara Roesler — estabeleciam entre si relações quase aversivas, quando não se dava entre eles uma cristalização que paralisava o que antes fora fluxo e passagem.

As pinturas e esculturas feitas por Laura Vinci desde a metade dos anos 80 sem dúvida já traziam algumas questões que se desdobraram nas obras posteriores a 1997: uma estreita interação com o espaço, a sucessão de lugares mais definidos e de regiões menos determinadas. Mas foi com a “ampulheta” de 1997 que tudo adquiriu uma expansão e um potencial novos. Nas ruínas de um velho moinho da cidade de São Paulo, Laura colocou sobre uma das lajes do prédio abandonado uma montanha de areia finíssima. Por um furo feito no cimento da laje a areia escorria levemente para o andar inferior, sujeita à ação do vento e à umidade, refazendo aos poucos o monte da laje superior.

A passagem do tempo materializada no escoamento da areia se reforçava pelo contato com o prédio velho e arruinado. A areia que, lentamente, se depositava sobre o chão realizava de maneira acelerada o mesmo movimento que os elementos naturais operaram sobre o edifício, também depositando sobre ele toda sorte de sinais, da corrosão dos materiais ao cinza da fuligem, dos musgos às infiltrações da água.

Mas era a capacidade de relacionar a areia com o ambiente e a natureza — o vento que atravessava as paredes em ruínas, a umidade, o peso das diversas partículas de areia — que dava grandeza e significado à instalação. A areia escorria livremente, balizada apenas pelo furo feito na laje. Mas sua queda estava sujeita às variações que o meio, descontroladamente, lhe impunha. Esse movimento colocava o observador numa relação contemplativa com a passagem do tempo. Não se tratava mais do tempo linear do relógio e da regulação da vida de homens e mulheres, e sim de um fluxo em que as condições ambientais desempenhavam um papel decisivo, como quando a vida se regia tão-somente por ciclos naturais: as estações, o dia e a noite etc. Esse envolvimento corporal com o tempo — de pessoas que experimentavam a ação dos mesmos elementos que atuavam sobre a areia — fazia com que também nós passássemos com ele, em lugar de ilusoriamente tentar detê-lo ou controlá-lo.

O que se depositava sobre o chão era apenas tempo morto, um material sem vida que se acumulava inerte sobre a laje. E ali, passando com a areia, nós parecíamos aprender a morrer, pois o que nos atraía era justamente a perda de controle sobre uma ação mais poderosa que nós, uma leveza que tornava nossa finitude algo digno de ser experimentado .

Na “ampulheta”, Laura Vinci conseguia pôr em contato elementos muito diversos (areia, gravidade, construção, percepção, vento etc.) que estabeleciam entre si relações de continuidade e sentido. Pouco depois, em 2000, Laura realiza outra instalação — desta vez no Centro Universitário Maria Antonia, também em São Paulo — em que essa proximidade entre os elementos parecia estreitar-se ainda mais. Em meio às colunas da grande sala, uma espessa camada de pó de mármore ocupava boa parte do espaço expositivo. Sobre ela e em suas margens foram dispostos volumes meio orgânicos esculpidos no mesmo mármore de que era feito o pó que se amontoava no chão.

Em princípio, criava-se entre os volumes e o pó uma quase indistinção, tão próximos eram na tonalidade e na forma, pois a topografia do monte branco também tinha algo da configuração sinuosa e arredondada dos volumes. Mas uma estranha cisão tornava quase aflitivo aquele contato tão estreito e tão inerte. Se um predicado — “branco” — podia recobrir perfeitamente aqueles dois elementos, ficava evidente o quanto esse ato de nomear deixava de lado as sutis diferenças que cindiam aquela continuidade estabelecida verbalmente.

Aí ficava clara a profunda intuição de Laura Vinci em relação à história da escultura e de seus significados. Aquilo que era sólido e que teve contornos definidos foi triturado e tornou-se pó — um pó tão fino que parecia apto a ganhar novas configurações com a menor corrente de ar. A concentração brancusiana dos volumes se dispersava pelo contato com o informe da topografia da areia, e vice-versa. No entanto, a reversibilidade entre o sólido e o arenoso, entre o formalizado e o informe, jamais se cumpria plenamente. E era a ansiedade produzida pelo contato entre coisas tão próximas e tão irredutíveis que tornava o convívio entre elas tão aflitivo e incômodo.

Numa passagem memorável de seu livro sobre Rembrandt, Georg Simmel afirma: “Toda obra plástica, no sentido mais amplo do termo, visa a superar o que a existência tem de obscuramente substancial, elaborando a forma. Pois o seu oposto não é a forma desprovida de sentido da massa de gesso ou do bloco de mármore bruto, a partir dos quais se vai em seguida desenvolver a forma provida de sentido; mas é o elemento absolutamente heterogêneo à forma, que não é jamais visível, e que suprime toda elaboração formal” . Na instalação de Laura Vinci, era justamente essa heterogeneidade que vinha à tona, esse convívio poucas vezes obtido numa obra de arte — Simmel menciona Giotto, acho que poderíamos acrescentar os escravos de Michelangelo — entre forma e algo “obscuramente substancial”. Naquela obra, Laura nos fazia lembrar o quanto o processo de formalização suposto em qualquer trabalho de arte pode nos afastar de dimensões mais opacas e resistentes da existência, empobrecendo sua compreensão, sobretudo numa época — a nossa — em que praticamente lidamos o tempo todo com um mundo já formalizado.

Nesta instalação de 2000 a fluidez que caracterizava a “ampulheta” emperrava, por mais que a proximidade entre os componentes da obra fosse ainda maior que na instalação de 1997. Sem que, no entanto, a artista se limitasse à simples enumeração desses diferentes níveis da existência, apontando simultaneamente para a necessidade de contato entre eles — o desejo de que às formas viesse se juntar aquele estrato opaco que impede que concebamos o mundo como algo redutível à vontade e à ordenação.

Em “Mona Lisa” — realizado no Centro Cultural São Paulo em 2001 e que guarda semelhanças com a instalação montada em Miami em dezembro de 2003 —, Laura novamente buscava uma passagem mais serena entre os elementos empregados na obra, como já ocorrera com a “ampulheta”. Bacias transparentes foram dispostas pelo chão, algumas contendo água, outras vazias. Sua distribuição tinha a irregularidade dos acontecimentos naturais e elas se aproximavam mais aqui, para distanciarem-se acolá, num ritmo desigual que pontuava o espaço de transparências diversas e de reflexos variados, a povoar de lugares estranhos o que fora uma extensão homogênea. A água das bacias era aquecida por resistências cujos fios estavam envoltos por tubos de cobre que tornavam ainda mais capilar o contato entre as várias partes da instalação. Aos poucos a água se aquecia, evaporava, condensava-se no teto e gotejava sobre o chão. Um ciclo completo se cumpria diante de nossos olhos, com todas as associações que a água — freqüentemente associada à vida e a sua manutenção — desperta .

Mas o trabalho não alcançaria a força que alcançou se as mudanças de estado da água não fossem acompanhadas de um sentido formal que intensificava e ampliava o ciclo que conduzia do líquido ao líquido. O espaço do Centro Cultural São Paulo adquiria resistência e corporeidade não apenas pelo vapor que subia das bacias. Os diferentes espelhamentos permitidos pelas superfícies de água e pelos vidros traziam para baixo o que se mostrava inalcançável no teto da sala, ao mesmo tempo que os inúmeros reflexos tornavam o ar um material presente e facetado. E na versão de 2002, realizada no Centro Cultural do Banco do Brasil, em São Paulo, os tubos de cobre, subindo por todo o vão do prédio, reforçavam ainda mais essa proliferação de vínculos entre regiões e lugares distintos, constituindo assim uma trama contínua e heterogênea que possibilitava que todos nossos sentidos experimentassem uma potencialização de suas capacidades.

Num texto muito esclarecedor sobre a “Mona Lisa”, de Leonardo da Vinci, o historiador italiano Giulio Carlo Argan afirmava: “É inútil interrogar o famoso sorriso da senhora para saber quais sentimentos traz na alma: nenhum em particular, mas o sentimento difuso do próprio ser, ser plenamente e em uma condição de perfeito equilíbrio no mundo natural” . O que Laura Vinci faz em sua “Mona Lisa” não é apenas uma atualização das formidáveis investigações de Leonardo, ao colocar no espaço real o que da Vinci figurara sobre a tela. Para Leonardo, a unidade harmônica do universo era presidida por uma metafísica da luz — estreitamente ligada ao neoplatonismo florentino — que encontrou sua verdade plástica no seu célebre sfumato. Laura Vinci — que o destino quis que tivesse o mesmo sobrenome do pintor florentino — prescinde dessa mística da luz, ao revelar uma possível harmonia feita a partir de materiais muito diversos e ao articular regiões altamente diferenciadas, embora — desnecessário frisar — não tenha a força inaugural da obra de Leonardo da Vinci.

No entanto, pouco depois desse esforço de integração Laura surpreende com a instalação realizada na Galeria Nara Roesler em 2003. Aparentemente havia neste trabalho um estreitamento ainda maior do que na obra feita com pó e volumes de mármore. Numa sala toda branca, a artista dispôs por toda a volta das paredes serpentinas de gelo —igualmente brancas pelo congelamento do ar — que se desdobravam como galhos pelo espaço da galeria, ao mesmo tempo em que, à altura dos olhos, se convertiam em letras que compunham um texto escrito por Laura. No chão, placas de material plástico — dessas usadas em ambientes úmidos, que permitem que a água escorra para baixo, deixando sua superfície relativamente seca —, igualmente brancas, completavam o cenário glacial, que a iluminação industrial, fluorescente e fria, só fazia ressaltar.

Aparentemente, Laura Vinci apenas transpusera para temperaturas inferiores a zero o que ocorrera em “Mona Lisa”, mantendo intacto aquele sistema de passagem entre os estados de uma mesma substância . Mas seria enganosa essa aproximação. Como na instalação com pó e volumes de mármore, a extrema vizinhança entre todas as partes da obra produzia um poderoso efeito colateral, uma espécie de má continuidade repleta de significados. Em meio àquele ambiente asséptico e frio, insinuava-se a todo instante uma violência surda mas incontornável. Era praticamente impossível não associar a limpeza da instalação a lugares em que se dão atividades altamente invasivas: matadouros, hospitais, laboratórios, salas de autópsia etc. Na proteção da sala imunizada algo de sangrento e cruel se insinuava constantemente, com o que aquela experiência aversiva da instalação de 2000 se atualizava de maneira ainda mais intensa.



Uma parte significativa da melhor arte contemporânea vem procurando há algum tempo propor experiências que possibilitem uma compreensão mais íntegra de nossas relações com a natureza, entendida num sentido amplo como condição da própria existência e como um momento das relações sociais. Muitos trabalhos da land art vão nessa direção, embora com soluções diversas entre si.

Para o norte-americano Walter de Maria — sobretudo se considerarmos “Lightning field”, um de seus trabalhos mais relevantes — tratava-se de catalisar, por meio de centenas de pára-raios dispostos num terreno de aproximadamente 1,6 km², a eletricidade dos raios numa região do Novo Mexico em que sua incidência é bastante alta. A intervenção na natureza — o uso dos pára-raios — não a domesticava. Ao contrário, ajudava a desencadear forças mais intensas e selvagens. Uma operação muita diversa da realizada pelo búlgaro Christo, que tende a edulcorar a natureza em que atua, usando-a como simples suporte para toda sorte de caprichos, dos empacotamentos às longas cortinas de tecido.

Por outro lado, o inglês Richard Long encontrou uma maneira menos abrupta de se relacionar com a natureza. Retomando a tradição dos caminhantes e peregrinos, Long produz trabalhos em que a formalização nasce de um contato sereno com o mundo: “Eu comecei trabalhando ao ar livre e usando materiais naturais como grama e água, e isso evoluiu para a idéia de fazer esculturas by walking” . Surgem daí percursos que apenas pontuam a indefinição de amplas extensões de terra ou o rearranjo de objetos — pedras, galhos, fragmentos de toda espécie — característicos de uma região. Não se trata de transformar a natureza, mas apenas de demarcá-la, como quem deixa pegadas atrás de si com a intenção de não se perder.

Na Itália, quase todos os artistas ligados à arte povera também se interessaram por encontrar formas de, em lugar de representar a natureza, apresentá-la enquanto potência. Nas palavras de Germano Celant, o crítico que cunhou o termo arte povera: “O seu trabalho [do artista povero] não busca servir-se dos mais simples materiais e elementos naturais (cobre, zinco, terra, água, rios, chumbo, neve, fogo, erva, arte, pedra, eletricidade, urânio, céu, peso, gravidade, calor, crescimento etc.) para uma descrição ou representação da natureza; o que lhe interessa é, ao contrário, a descoberta, a apresentação, a insurreição do valor mágico e maravilhoso dos elementos naturais” . Mas se observarmos, por exemplo, algumas obras de Pier Paolo Calzolari — que desde os anos 60 tem o gelo como elemento central de sua produção —, fica claro que, junto com o esforço para revelar a singularidade desse elemento, associa-o com freqüência a conteúdos simbólicos — tudo que gira em torno do conceito de sublime — que o fazem perder parte de um presença física: “O gelo é um momento primário. Não é a pintura que descreve, não é a literatura que escreve, que fabula, mas é a matéria ‘anômala’, (…) única e só, por isso sublime, que absorve luz e espaço, cujo equilíbrio é frágil e delicado”.

Contudo, a meu ver foi Joseph Beuys o artista contemporâneo que levou mais longe esse tipo de interrogação. Beuys tentou atualizar neste nosso mundo fragmentado e cindido as figuras plurifacetadas de Leonardo e Goethe. A escultura social defendida por ele consistiria no esforço para problematizar todos os tipos de formalização — a começar pelo próprio pensamento —, tendo em vista uma sociedade mais fraterna e plástica: “Quando eu digo que todos são artistas, quero dizer que todos podem determinar o conteúdo da vida em sua esfera particular, seja ela pintura, música, engenharia, o cuidado dos doentes, economia etc. Em torno de nós os fundamentos da vida estão implorando para serem moldados ou criados. Mas nossa idéia de cultura foi severamente restringida, porque nós sempre a aplicamos à arte” .

A Eurásia mítica revivida por Beuys em vários trabalhos reuniria a razão ocidental à intuição oriental. A presença constante de animais em suas ações — como no admirável “I like America and America likes me”, em que o artista passa três dias trancado com um coiote num espaço da Galeria René Block, em Nova York — tentava nos reaproximar de instintos e comportamentos há muito esquecidos. Talvez seja possível acusar o artista alemão de ingenuidade e excessiva singeleza. Mas foram elas que propiciaram uma das obras mais instigantes da segunda metade do século XX. Tudo na atividade de Beuys confluiria para uma aproximação tensa e dilacerada entre arte e vida, num movimento que passaria necessariamente por um novo vínculo com a natureza.

Foi porém no esforço para obter uma nova noção de matéria que, a meu ver, a obra de Beuys mostrou toda sua originalidade. O recurso constante a certos materiais — feltro, gordura, cobre, mel, cera de abelha — em contextos que os livravam da simples instrumentalização e que os associava a situações repletas de simbolismo — caos, indeterminação, calor criativo etc. — conferia àqueles elementos um novo estatuto. Na obra de Beuys, a cera de abelha, por exemplo, torna-se a imagem de um processo que pode ir do amorfo ao mais organizado (os favos) e assim adquire uma extensão e uma espessura que devolvem às coisas um sentido absolutamente diverso daquele restrito ao simples uso. Escusado dizer que esse mundo avesso à simples manipulação suporia forçosamente um novo vínculo com a sociedade e com os indivíduos.

Laura Vinci nasceu em 1962 e ainda está desenvolvendo seu trabalho e suas intuições. Mas me parece que, até onde podemos observar, sua obra diferencia-se consideravelmente das produções contemporâneas que mencionei rapidamente, embora mantenha com elas um estreito diálogo. A natureza que surge em suas instalações é, de saída, menos simbólica que aquela que vemos se desenhar sobretudo nas obras dos artistas europeus. A água, o tempo ou o calor aparecem em suas instalações como elementos sujeitos às leis físicas e químicas, embora evidentemente constituam, nas relações estabelecidas por seus trabalhos, novos significados e novas perspectivas. Beuys e Calzolari, por sua vez, buscam justamente o contrário: elevar os elementos a uma esfera mágica em que aquelas leis não tenham vigência e que por isso mesmo encarnem uma série de significados ligados a concepções culturais mais ou menos míticas e espiritualizantes.

Não é casual que, quanto a isso, os trabalhos de Laura Vinci estejam mais próximos das intervenções da land art norte-americana. Para artistas como Walter de Maria, Robert Smithson e Michael Heizer também interessa fortemente essa imagem da natureza como força física e exterioridade, embora estejam sempre à beira de conduzi-la para as profundezas insondáveis do sublime.

A meu ver, porém, o que confere singularidade às obras de Laura é a sucessão, nos sistemas que constrói, de situações mais harmônicas e de relações aversivas, como tentei mostrar atrás. Observando a série de seus últimos trabalhos tem-se a impressão de que se depreende daí um mundo presidido por cisões e continuidades, fluidez e ruptura.

Talvez fosse possível localizar a origem dessa particularidade na própria natureza brasileira. A enorme extensão territorial do país e as vastas regiões praticamente inexploradas alimentam no imaginário nacional e internacional a idéia de uma realidade natural exuberante e variada, selvagem e pujante. Se unirmos a isso a violência com que ela vem sendo destruída desde o início da colonização, não ficaria difícil ver aí algo da origem dos sistemas cindidos de Laura Vinci. No entanto, essa representação cultural da natureza do país raramente encontrou uma formalização equivalente em nossas artes visuais. Pense-se, por exemplo, na pintura de Tarsila do Amaral e de Guignard, nas instalações Hélio Oiticica ou nas esculturas de Franz Weissmann. Todas essas produções — muito diferentes entre si — lidam com uma noção contida de natureza, que se relaciona docemente com as forças civilizatórias que a balizam. Há exceções, é claro. Nos “Núcleos” e “Expansões” de Iberê Camargo via-se um esforço para expor sobre as telas um mundo tenso e expansivo. E nas esculturas de Krajcberg convivem a diversidade da natureza e a destruição que sofre em nossas mãos. Não me parece, porém, que em nenhum deles se tenha chegado, nem de longe, às exteriorizações poderosas de um Pollock ou de um Walter de Maria.

A simples existência de uma realidade natural grandiosa não parece portanto garantir que se alcancem manifestações artísticas e culturais à sua altura. Tudo leva a crer que esse movimento de representação passa decisivamente pelas mediações sociais que definem nossos vínculos com a natureza. E aí — por mais paradoxal que seja — haveria uma correlação entre o poder de intervenção sobre o mundo e a imagem que dele se constrói, com o que talvez pudéssemos chegar mais perto da compreensão das diferenças entre a arte brasileira e a norte-americana. Quanto à Europa, são tantos os estratos que se interpõem entre natureza e cultura que sua representação fortemente culturalista parece se justificar plenamente.

A meu ver, Laura Vinci tirou enorme proveito dessa nossa situação incompleta e desigual, na qual convivem, de maneira aflitiva e violenta, natureza e cultura, formas avançadas e primitivas de trabalho, cordialidade e cruel exploração. Suas instalações — que, da maneira como as entendo, devem ser vistas em conjunto — falam desse mundo em que a precariedade das normas sociais permitem observar vínculos fluidos e transições frágeis, pois quase nada se opõe às dinâmicas que buscam dominar e, até mesmo, afeiçoar a vida. Simultaneamente vem à tona toda a crueldade dessa situação, sem que se perca de vista o que haveria de promissor em relações menos estanques e cristalizadas, em que a maior proximidade entre estratos sociais, indivíduos e natureza trariam a possibilidade de uma existência melhor. Beleza e horror, atração e repulsa trocam incessantemente de posição nessas obras, e considero difícil conceber imagem mais realista dos dilemas que enfrentamos. Como nos versos de Mario Faustino, “tanta violência, mas tanta ternura!”.

Também alguns trabalhos de Nuno Ramos e de Nelson Felix lidam com questões semelhantes, o que ajuda a ver a extensão e a riqueza dessa problemática entre nós. No “Grande Budha”, de Nelson Felix, algumas garras de metal foram colocadas em torno do tronco de uma árvore. À medida que a árvore cresce, as garras penetram seu tronco, num movimento em que a vitalidade vegetal se revela apenas pela violência que lhe é imposta. Nas pedras que secretam vaselina — produzidas por Nuno Ramos em 1998 —, ocorre algo semelhante: somente uma enorme pressão faz vir à tona o que da natureza é mais íntimo.

Nunca como hoje se interveio de maneira tão profunda na natureza e nas relações sociais; intervenções que, ao menos em parte, se condicionam reciprocamente. Da engenharia genética às guerras “defensivas”, tudo supõe um planejamento desvairado, que se move automaticamente, perseguindo fins estranhos a tudo e a todos. Paradoxalmente, tende-se a criar e impulsionar, em função desse poder de intervenção e moldagem, a noção de um mundo plástico e harmoniosamente adaptável, uma segunda natureza ainda mais plácida que a imaginada nas mais bucólicas utopias. A idéia pós-moderna de que a realidade se converteu em imagem talvez seja apenas a formulação mais acabada dessa ideologia. Das margens do sistema internacional, Laura Vinci encontrou uma posição altamente reveladora de observar esses movimentos. Aqui, Mona Lisa não é a face serena de um mundo harmônico e pleno. Talvez feche os olhos de aflição. Talvez às vezes os entreabra de emoção.